Silvana Lagoas
Sempre acreditei que as leis existem para ser interpretadas. E não é uma crença sem fundamento: se fossem regras fixas e inquestionáveis, bastava afixá-las por aí, como placas de “Proibido fumar” ou “Não deitar lixo no chão” (sem garantia de que vão ser respeitadas, mas isso são outros quinhentos). O Direito, afinal, não é estático: é justamente essa maleabilidade que justifica a existência de advogados, juízes e processos complexos. Um bom advogado, afinal, não é só quem sabe citar artigos de cor, mas quem consegue dar-lhes significados diferentes, encaixar exceções, anular uns com outros. É essa complexidade que, em teoria, garante justiça para todos — ou pelo menos deveria.
Não posso dizer que fiquei particularmente surpresa ao saber que o humorista Léo Lins foi condenado a oito anos de prisão. Nos últimos tempos, parece que os tribunais estão abarrotados de casos assim (fossem eles tão competentes e rápidos a resolver outros processos).
Em Portugal, por exemplo, o Mário Machado (personagem que eu preferia não saber quem é) também foi condenado a mais de dois anos de cadeia por causa de um post no X (antigo Twitter).
No Brasil, alguns já se exilaram
nos Estados Unidos para não enfrentar decisões judiciais e, pelo mundo fora, só
se fala em regular redes sociais, censurar piadas em nome da “proteção das
minorias” ou do “salvamento da democracia” — leia-se: autoritarismo para
proteger a democracia. Fica cada vez mais claro que, quando convém, a liberdade
de expressão também pode ser descartada.
Enquanto isso, num zapping rápido pelo X, dei de caras com a mais nova polémica: a família de um empresário bilionário, fotografada com a filha de cinco anos carregando uma bolsa de 14 mil reais. Dias antes, um deputado exibiu um look exorbitante — e a guerra de comentários foi imediata. A direita criticou o deputado de esquerda. A esquerda devolveu na hora: “Ela faz o que quiser com o próprio salário.” E, convenhamos, têm razão — o empresário, por outro lado, aparentemente não tem esse mesmo direito.
Mas o que me deixou mesmo
perplexa foi um detalhe: entre mil e um comentários indignados, havia um post
que sugeria, textualmente, que a solução para acabar com a injustiça social
seria decapitar a menina de cinco anos numa guilhotina. O autor fez questão de
esclarecer: “Não é metáfora.”
Fica a pergunta: esta pessoa
vai ser julgada por incitação à violência ou discurso de ódio? Ou isso é
reservado a humoristas e a quem não faz parte do “lado certo”? (E não, não
defendo essa bandeira; liberdade de expressão devia ser plena.)
O Direito deveria ser
dinâmico, interpretativo, mas justo. Não é suposto a Justiça ter lado. No
entanto, a balança parece ter trocado a venda pela lente seletiva: quem faz
piada pode ser preso, quem prega decapitação de criança — desde que seja do
“lado certo” — continua por aí, tuitando feliz.
A Justiça já não é cega. É
seletiva. E, para mim, isso é mais perigoso do que qualquer piada de mau gosto.
Título, Imagem e Texto: Silvana
Lagoas é mãe a tempo inteiro, autodidata, livre pensadora. ContraCultura,
11-7-2025
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