Rafael Nogueira
A versão brasileira de hoje é
um pouco diferente. O espertinho, ao perceber a prontidão com que os homens
armados vinham ajudá-lo, passa de brincalhão a perverso e se aproveita do
afobamento dos que logo se punham a disparar, usando isso contra desafetos. Num
dia, sua gritaria fez de cães pacatos vítimas de tiros descuidados; noutro, uma
pessoa saiu ferida. Ao notar que não houve tomada de consciência — “foi pelo
bem comum”, “os cães se comportavam como lobos” —, o teatro continuou, até
afugentar vizinhos, tomar pomares, terrenos, haveres. E não houve tomada de
consciência. Ainda.
Todos os dias, alguém proclama
o “fim da democracia” com a mesma gravidade com que o menino travesso anuncia o
lobo. Parte da crise nasce da própria reação à gritaria. Não nego as crises que
existem. Democracia é, por definição, gestão de crises continuadas, sucessivas,
jamais terminadas. Distinguir fala contundente, divergência insultuosa e falha
de governo de falência do regime é reconhecer a distância que separa um
engarrafamento de uma guerra civil.
Comecemos pelo básico. Democracia liberal é competição real pelo poder, com regras claras, árbitros visíveis e portas abertas para que qualquer adulto fale o que pensa e seja contrariado, vote e seja votado. Não é um paraíso na terra, ora. É um sistema para trocar governantes sem derrubar o sistema, sem eliminar o jogo. É um campeonato de futebol: emociona, irrita, alegra e deprime, mas ninguém torce contra a Copa — apenas contra o adversário. É do jogo. E o jogo tem de continuar. Se você carimba um time como “contra o jogo”, todos os outros se voltam contra ele — e tendem a se exceder.
A certa altura, a palavra
“crise” passou a sofrer abusos. Chamam de “crise” ao que antes era “problema”:
reforma malfeita, conflito áspero, governo incapaz, oposição barulhenta. Quando
o conceito estica demais, rompe. Chamam de “fascismo” a qualquer ajuste
esquisito de lapela, e perdemos a capacidade de distinguir o grave do
rotineiro. Se tudo é crise, tudo é urgente; se tudo é urgente, perdemos a noção
do que é de fato urgente. E pior: toda “exceção” parece justificável. Em nome
da democracia, prescrevem remédios que a adoecem gravemente.
“Mas os índices mostram
declínio!”, dirá o amigo das tabelas. Mostram, dentro de certos critérios,
limiares e escolhas de codificação que variam. Não é conspirar pedir
parcimônia. Números ajudam, mas números também erram: mexa no termômetro e
inventa-se a febre. Há casos sérios de retrocesso, não nego. O ponto é não
transformar tendências regionais em destino global.
E os malvados da hora: os
populistas? Populismo é um estilo: dramatiza o antagonismo, promete atalhos e
provoca reação simétrica. Há também um anti-populismo que responde à
teatralidade com sua própria mise-en-scène tecnocrática. Ambos vivem da
dramaturgia da crise. Até que alguém saia ferido. Mesmo que alguém saia ferido.
Num mundo que premia o grito, a campanha permanente substitui a gravitas do
estadista, e cada pequena disputa vira apocalipse. Perdemos a autocontenção, e
assim a tolerância pelos adversários cai.
Democracias podem conviver com
serviços ruins, burocracias lentas, políticas desastradas. É péssimo, mas é
problema de capacidade estatal, institucional, educacional, não de tipo de
regime. Países com eleições limpas podem gerir mal uma calamidade; parlamentos
barulhentos podem fracassar na reforma tributária. Chamar isso de “crise
democrática” é não entender nada.
As instituições também mudam,
e mudança não é sinônimo de desmonte. A vida institucional se ajusta por
afrouxos e apertos. Tomar todo ajuste por golpe é confundir metabolismo com
doença.
O que deve nos preocupar é o
que reduz a competição, fecha canais de alternância, cala todas as bocas que
perturbam. O resto é ruído normal da vida democrática. Se o ruído lhe parece
insuportável, vale se perguntar se você gosta mesmo desse negócio de democracia.
Porque seu alarmismo é profundamente antidemocrático.
Título e Texto: Rafael
Nogueira, O Dia, 20-8-2025
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