quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Alarmismo e Democracia

Rafael Nogueira

Tenho certeza de que o leitor conhece a fábula do menino e do lobo. Ela conta a história de um jovem pastor que, entediado, decide fazer piada às custas dos aldeões. O menino grita “Lobo!”, e os bons homens vêm correndo para ajudar. Às vezes vemos todos alvoroçados, apontando carabinas para o vento, enquanto o pastorzinho se acaba de rir. Repete a brincadeira muitas vezes, e os aldeões acabam irritados. Até que um dia aparece um lobo de verdade e ataca as ovelhas. E o menino. Ele grita por ajuda, mas, como ninguém acredita, perde as ovelhas e arrisca a própria vida.

A versão brasileira de hoje é um pouco diferente. O espertinho, ao perceber a prontidão com que os homens armados vinham ajudá-lo, passa de brincalhão a perverso e se aproveita do afobamento dos que logo se punham a disparar, usando isso contra desafetos. Num dia, sua gritaria fez de cães pacatos vítimas de tiros descuidados; noutro, uma pessoa saiu ferida. Ao notar que não houve tomada de consciência — “foi pelo bem comum”, “os cães se comportavam como lobos” —, o teatro continuou, até afugentar vizinhos, tomar pomares, terrenos, haveres. E não houve tomada de consciência. Ainda.

Todos os dias, alguém proclama o “fim da democracia” com a mesma gravidade com que o menino travesso anuncia o lobo. Parte da crise nasce da própria reação à gritaria. Não nego as crises que existem. Democracia é, por definição, gestão de crises continuadas, sucessivas, jamais terminadas. Distinguir fala contundente, divergência insultuosa e falha de governo de falência do regime é reconhecer a distância que separa um engarrafamento de uma guerra civil.

Comecemos pelo básico. Democracia liberal é competição real pelo poder, com regras claras, árbitros visíveis e portas abertas para que qualquer adulto fale o que pensa e seja contrariado, vote e seja votado. Não é um paraíso na terra, ora. É um sistema para trocar governantes sem derrubar o sistema, sem eliminar o jogo. É um campeonato de futebol: emociona, irrita, alegra e deprime, mas ninguém torce contra a Copa — apenas contra o adversário. É do jogo. E o jogo tem de continuar. Se você carimba um time como “contra o jogo”, todos os outros se voltam contra ele — e tendem a se exceder.

A certa altura, a palavra “crise” passou a sofrer abusos. Chamam de “crise” ao que antes era “problema”: reforma malfeita, conflito áspero, governo incapaz, oposição barulhenta. Quando o conceito estica demais, rompe. Chamam de “fascismo” a qualquer ajuste esquisito de lapela, e perdemos a capacidade de distinguir o grave do rotineiro. Se tudo é crise, tudo é urgente; se tudo é urgente, perdemos a noção do que é de fato urgente. E pior: toda “exceção” parece justificável. Em nome da democracia, prescrevem remédios que a adoecem gravemente.

“Mas os índices mostram declínio!”, dirá o amigo das tabelas. Mostram, dentro de certos critérios, limiares e escolhas de codificação que variam. Não é conspirar pedir parcimônia. Números ajudam, mas números também erram: mexa no termômetro e inventa-se a febre. Há casos sérios de retrocesso, não nego. O ponto é não transformar tendências regionais em destino global.

E os malvados da hora: os populistas? Populismo é um estilo: dramatiza o antagonismo, promete atalhos e provoca reação simétrica. Há também um anti-populismo que responde à teatralidade com sua própria mise-en-scène tecnocrática. Ambos vivem da dramaturgia da crise. Até que alguém saia ferido. Mesmo que alguém saia ferido. Num mundo que premia o grito, a campanha permanente substitui a gravitas do estadista, e cada pequena disputa vira apocalipse. Perdemos a autocontenção, e assim a tolerância pelos adversários cai.

Democracias podem conviver com serviços ruins, burocracias lentas, políticas desastradas. É péssimo, mas é problema de capacidade estatal, institucional, educacional, não de tipo de regime. Países com eleições limpas podem gerir mal uma calamidade; parlamentos barulhentos podem fracassar na reforma tributária. Chamar isso de “crise democrática” é não entender nada.

As instituições também mudam, e mudança não é sinônimo de desmonte. A vida institucional se ajusta por afrouxos e apertos. Tomar todo ajuste por golpe é confundir metabolismo com doença.

O que deve nos preocupar é o que reduz a competição, fecha canais de alternância, cala todas as bocas que perturbam. O resto é ruído normal da vida democrática. Se o ruído lhe parece insuportável, vale se perguntar se você gosta mesmo desse negócio de democracia. Porque seu alarmismo é profundamente antidemocrático.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 20-8-2025

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