Como de hábito, José Rodrigues dos Santos, baseado em fatos reais e juntando a imaginação, escreve um belo livro. Desta feita, sobre o terror e horror dos campos de concentração e extermínio da Alemanha do Terceiro Reich.
A primeira parte da história está neste livro:
Na véspera da segunda guerra
mundial, Praga está rendida à magia do Grande Niveli. No entanto, com a chegada
dos alemães a vida do mágico judeu é destroçada.
O português Francisco Latino
sempre foi considerado um brutamontes, mesmo entre os mercenários da Legião
Estrangeira. Quando a guerra o arrasta para o cerco de Leninegrado, a paixão
por uma russa leva-o a alistar-se nas SS.
O destino do mágico judeu e do
soldado português é o mesmo: Auschwitz-Birkenau.
A magia do Grande Nivelli será
chamada a desempenhar um papel central no mais terrível dos campos de morte.
Auschwitz como
nunca foi contado
O Mágico de Auschwitz revela-nos a Shoah como nunca foi mostrada.
Baseando-se em acontecimentos verídicos e em personagens reais, José Rodrigues
dos Santos leva-nos ao coração do maior dos campos da morte nazis e revela-nos
episódios desconhecidos do Holocausto, incluindo o papel que o misticismo e o
esoterismo desempenharam na Solução Final. Uma das mais importantes obras da
literatura portuguesa contemporânea.
Excerto da Parte Três – Prelúdio de
morte – I
Havia já dois dias que os
Levin, como todos os deportados que enchiam o vagão, não viam luz. A exceção
era a ténue claridade do dia que penetrava pelas frinchas das tábuas e quatro pequenas
aberturas para o exterior protegidas por arame farpado. Os olhos tiveram de se
habituar à treva absoluta durante a noite e à semiescuridão de dia.
Parecia a Levin absolutamente
incompreensível que os alemães tratassem pessoas daquela maneira. Era a segunda
viagem que faziam como deportados e não tinha qualquer comparação com a
primeira. A viagem efetuada meses antes de Praga até Theresienstadt fora dura,
onze horas fechados numa carruagem de passageiros sem nada para comerem não era
normal, mas dir‑se‑ia um passeio de luxo ao pé do que se passava na
nova deslocação. Não só estavam ali umas sessenta pessoas fechadas às escuras
havia já dois dias, as portas trancadas por cadeados exteriores, como a
composição em que dessa feita os meteram no famoso transporte para leste era formada
por vagões para gado. Vagões para gado! Os alemães tinham fechado homens e
mulheres, incluindo idosos, doentes e crianças, em vagões para gado!
As crianças choramingavam a
toda a hora, no início com grande intensidade e nas últimas vinte e quatro
horas já com fraqueza, enquanto os doentes gemiam. Toda a gente tinha sede e fome.
Fazia um frio incrível, pois era inverno. O calor gerado por toda aquela massa
de gente comprimida era a única vantagem que havia em estarem fechados durante
tanto tempo no vagão.
“Vovó?”
A voz da rapariga soara algures
da esquerda, no meio da massa de gente que se acotovelava no vagão, arrancando
Levin aos seus pensamentos.
“Deixa, Zdanka”, murmurou
alguém. “A vovó já não está entre nós...”
“Vovó?!”
Os soluços da rapariga foram
acolhidos com um silêncio pesado entre os deportados. Tratava‑se
da segunda morte no vagão desde o início da viagem. Preocupado com o moral da família,
Levin espreitou o filho, aninhado aos seus pés; adormecera meia hora antes,
quando ele lhe cantara uma das suas canções favoritas em ladino, e a dormir
continuava. A seguir olhou para Gerda e viu‑a igualmente exausta; dir‑se‑ia
que dormia de pé. Pelos vistos não se aperceberam da morte da idosa e
parecia-lhe melhor assim. A prioridade naquele instante era descansar. Com o
vagão tão apertado, não havia lugar para todos no chão e os ocupantes só se
sentavam alternadamente. Aquela vez não era a dos Levin. Felizmente havia as pequenas
aberturas entre as tábuas. Elas possibilitavam que se deitassem coisas fora e,
além de deixarem entrar ar, permitiam perceber em que sentido ia a composição.
Pela posição do Sol confirmou‑se que de facto se dirigiam para leste.
Tinham já passado por Praga e por Ostrava e nas
últimas horas cruzaram estações com tabuletas em polaco.
Por vezes o comboio parava numa
estação, embora as portas permanecessem fechadas, ou no meio do campo, e ficava
aí imóvel durante horas. A maior parte das vezes, todavia, eram os outros
comboios que ficavam parados à espera de que a composição de Theresienstadt
passasse, em certos casos com os vagões carregados de tanques ou de outro
material militar destinado à frente russa. Pelos vistos o seu comboio tinha prioridade
até sobre as composições envolvidas no esforço de guerra. Como era possível que
um mero transporte de judeus fosse para os alemães mais importante do que os
abastecimentos destinados às tropas?
Havia já algumas horas que
Levin sentia o ventre apertar. Apesar do esforço para reter os intestinos,
percebeu que não aguentaria muito mais. Em bom rigor, a sua resistência chegara
ao fim. Ou se aliviava no próximo minuto ou fazia tudo ali à frente da família.
Sem alternativa, enfiou‑se pela massa compacta de gente e tentou
abrir caminho.