terça-feira, 26 de agosto de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Como um alimento vindo dos seios

Aparecido Raimundo de Souza

ERA UMA TARDE de sexta-feira, dessas em que o firmamento magnânimo parece suspenso por um fio de algodão. Os vizinhos das moradias próximas, transitavam num vai e vem sem motivo de pressa. Nas residências contíguas à minha, os mais longevos cochilavam com a televisão e o rádio ligados. Eu, tomado por uma inquietação que não saberia vocabulariar, deixei o campinho de futebol onde jogava com os guris da minha idade e voei para casa. Não entrei. Como cultivador da velha mania, antes de avisar meus avós da minha chegada, pulei ligeiro para o cimo do muro em frente à varada e me abanquei nele, tipo assim, como quem se prostra numa égua solta num pasto imaginário.

Me posicionei como quem não escolhe lado, como quem não se importa em se equilibrar. A construção não se fazia alta, o que me propiciava ficar a cavalheiro. Nesse dia, quase três da tarde, não sei por qual cargas d’água, não foi um sentar qualquer. Foi um gesto cheio de desejo e de desafio.  Grudei no pelo do muro e me aboletei como se cavalgasse uma garota da minha escola, uma donzela da mesma idade que eu —, não por dominação, mas por entrega. Por querer, lado outro, sentir o mundo sob meus costados, vibrando, reagindo, dizendo intimamente “estou vivo”. Gente que passa me olha torto. Uns acham que estou louco, outros talvez invejem a liberdade de quem não teme o ridículo.

Mas o meu muro não julga. Ele apenas me sustenta. Ficar em cima dele, diz sempre meu velho avô João, “é sinal de indecisão.” Mas confesso, indecisão ou não, há dias em que alguma coisa dentro de mim me diz alto e em bom som que eu preciso estar ali, entre o sim e o não, entre o desejo e o medo. E se for para estar com a bunda no muro, que seja, acima de tudo, na construção que guarnece a minha casa e, de roldão, sustenta a intensidade febril que move a minha infância. Fazia isso também, quero deixar claro, não por desejo carnal, embora aos quinze soubesse o que significa transar com uma menina da minha sala. A bem da verdade, não pensava em “besteiras”, me aliviava num cinco contra um no banheiro, quando ao tomar uma ducha gelada, me deleitava vendo as fotos peladas, ora da cantora Rosana, ora da Vanusa, todavia, por ficar e me achar como se estivesse subjugado a uma metáfora.

Nessas horas, amoldado ao concreto quente do muro, algo parecia pulsar sob meu traseiro, como se tivesse vida própria e alma. Foi então que capturei a aproximação daquela moça vinda da pracinha. Deveria ter uns vinte e poucos anos. Trazia nos passos leves, um corpo magro, vestido numa blusa branca que de tão fina, “seus escondidos” davam a impressão de dançarem junto com a amenidade do vento. A jeans que usava, igualmente surrada e suja demais, contrastava com seus pés descalços de sapatos e pegadas. Apesar de inadequadamente vestida, percebi, trazia nos olhos verdes claros uma tristeza antiga, uma espécie de dor atormentadora que de tão pesada, fazia seus passos serem lentos demais.

Do mesmo lado, mas em sentido oposto, um menino de rua, magro e raquítico como um fio de esperança, surgiu do nada. Veio vindo, veio se aproximando e de repente, ao se cruzarem, ele se postou na frente dela num salto, porém, com a urgência dos que não têm tempo.

“Moça, me dá alguma coisa pra mim beber e comer?”

A jovem, num primeiro momento me cravou os olhos. Me desvestiu da cabeça aos pés, me espiou compridamente sem medo e sem receio. No meu entender, ela se fez excelsa e altissonante, alcandorada e sublime, repletada de todas as benesses que outras em dias passados, tiveram o prazer de me endereçaram num olhar. Entretanto, acima de tudo, me divisando no alto do muro —, à espreita, diferente de todas que já cruzaram comigo, também não me julgou.

Seu todo feminino se abriu em festa e apenas seu “eu” pulsou. Embora estivesse do outro lado da rua, não tinha a tez espantada, mas imanava uma força imarcescível. Era um poder sublime, feito de concreto e paz, de silêncio e grito. O meu muro, naquele instante, deixou de ser barreira e virou corpo. E eu, cavaleiro sem armadura, me deixei levar pela fantasia de que o mundo pode ser montado, sentido e desafiado. Em ato seguinte, a encantada desviou a sua bondade para a criatura. Mirou seu rostinho como quem desvendasse o céu. E então, como se obedecesse a uma ordem invisível, se ajoelhou. O mundo parou. O tempo estancou. E ela, tomada por uma força que não era dela, levantou a fina blusa e ofereceu o seio, como quem oferece o universo.

O menino, sem pudor, se deitou em seu colo e indiferente aos pingados que passavam, mamou. Não com fome, mas com a sofreguidão da fé. Como quem bebe luz. Como quem suga o mistério da vida. Depois de saciado, sorriu matreiro. Se abriu numa anagogia que não cabia num rosto tão pequeno. Foi nesse momento que eu, ainda montado no muro como um cavaleiro do absurdo, entendi tudo. O lugar onde a bondosa se deteve, não era uma simples calçada de rua. Era um altar. Era o palco. Era o ventre. E eu, sem saber, me transformara em testemunha de um milagre. O menino se levantou, olhou para nós com olhos de estrela e disse: “Obrigado. Agora posso partir.”

E, de fato, ele se foi. Subiu. Literalmente. Como se os pés fossem feitos de magia. Como se o corpo magro e desnutrido fosse moldado de anjos em festa. Virou querubim diante dos nossos olhos. A vizinhança, que me criticava por causa da minha cavalgada metafórica, caiu em prantos. Dona Lourdes do boteco, desmaiou. Seu Genival da farmácia filmou tudo e postou com a legenda: “Menino vira anjo após mamar em mulher santa. Vejam antes que apaguem.”

A polícia chegou, claro. Sempre chega. Dessa vez não prendeu ninguém. O delegado olhou para a mulher, depois para o céu, por fim, olhou para mim estupefatado no muro como um gato tentando esconder o rabo. Após isso, voltou a perscrutar de novo para a mulher e desabafou: “Tem coisa que nem o Código Penal explica.”

Desde então, dizem os que souberam da história, tudo mudou. Se transformou da água para o vinho. O muro — ah, o muro — onde aquela linda moça parou e o chão onde se sentou e alimentou o pequeno faminto, virou ponto turístico. Tem até uma placa, em letras garrafais:

“AQUI UM DEUS EM FORMA DE MENINO JESUS MAMOU O MILAGRE. E DEPOIS GLORIOSAMENTE ELE SUBIU AOS CÉUS.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Barretos, interior de São Paulo, 26-7-2025

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