Aparecido Raimundo de Souza
Me posicionei como
quem não escolhe lado, como quem não se importa em se equilibrar. A construção
não se fazia alta, o que me propiciava ficar a cavalheiro. Nesse dia, quase
três da tarde, não sei por qual cargas d’água, não foi um sentar qualquer. Foi
um gesto cheio de desejo e de desafio.
Grudei no pelo do muro e me aboletei como se cavalgasse uma garota da
minha escola, uma donzela da mesma idade que eu —, não por dominação, mas por
entrega. Por querer, lado outro, sentir o mundo sob meus costados, vibrando,
reagindo, dizendo intimamente “estou vivo”. Gente que passa me olha torto. Uns
acham que estou louco, outros talvez invejem a liberdade de quem não teme o
ridículo.
Mas o meu muro não julga. Ele apenas me sustenta. Ficar em cima dele, diz sempre meu velho avô João, “é sinal de indecisão.” Mas confesso, indecisão ou não, há dias em que alguma coisa dentro de mim me diz alto e em bom som que eu preciso estar ali, entre o sim e o não, entre o desejo e o medo. E se for para estar com a bunda no muro, que seja, acima de tudo, na construção que guarnece a minha casa e, de roldão, sustenta a intensidade febril que move a minha infância. Fazia isso também, quero deixar claro, não por desejo carnal, embora aos quinze soubesse o que significa transar com uma menina da minha sala. A bem da verdade, não pensava em “besteiras”, me aliviava num cinco contra um no banheiro, quando ao tomar uma ducha gelada, me deleitava vendo as fotos peladas, ora da cantora Rosana, ora da Vanusa, todavia, por ficar e me achar como se estivesse subjugado a uma metáfora.
Nessas horas, amoldado
ao concreto quente do muro, algo parecia pulsar sob meu traseiro, como se
tivesse vida própria e alma. Foi então que capturei a aproximação daquela moça
vinda da pracinha. Deveria ter uns vinte e poucos anos. Trazia nos passos leves,
um corpo magro, vestido numa blusa branca que de tão fina, “seus escondidos”
davam a impressão de dançarem junto com a amenidade do vento. A jeans que
usava, igualmente surrada e suja demais, contrastava com seus pés descalços de
sapatos e pegadas. Apesar de inadequadamente vestida, percebi, trazia nos olhos
verdes claros uma tristeza antiga, uma espécie de dor atormentadora que de tão
pesada, fazia seus passos serem lentos demais.
Do mesmo lado, mas em
sentido oposto, um menino de rua, magro e raquítico como um fio de esperança,
surgiu do nada. Veio vindo, veio se aproximando e de repente, ao se cruzarem,
ele se postou na frente dela num salto, porém, com a urgência dos que não têm
tempo.
“Moça, me dá alguma
coisa pra mim beber e comer?”
A jovem, num primeiro
momento me cravou os olhos. Me desvestiu da cabeça aos pés, me espiou
compridamente sem medo e sem receio. No meu entender, ela se fez excelsa e
altissonante, alcandorada e sublime, repletada de todas as benesses que outras
em dias passados, tiveram o prazer de me endereçaram num olhar. Entretanto,
acima de tudo, me divisando no alto do muro —, à espreita, diferente de todas
que já cruzaram comigo, também não me julgou.
Seu todo feminino se
abriu em festa e apenas seu “eu” pulsou. Embora estivesse do outro lado da rua,
não tinha a tez espantada, mas imanava uma força imarcescível. Era um poder
sublime, feito de concreto e paz, de silêncio e grito. O meu muro, naquele instante,
deixou de ser barreira e virou corpo. E eu, cavaleiro sem armadura, me deixei
levar pela fantasia de que o mundo pode ser montado, sentido e desafiado. Em
ato seguinte, a encantada desviou a sua bondade para a criatura. Mirou seu
rostinho como quem desvendasse o céu. E então, como se obedecesse a uma ordem
invisível, se ajoelhou. O mundo parou. O tempo estancou. E ela, tomada por uma
força que não era dela, levantou a fina blusa e ofereceu o seio, como quem
oferece o universo.
O menino, sem pudor,
se deitou em seu colo e indiferente aos pingados que passavam, mamou. Não com
fome, mas com a sofreguidão da fé. Como quem bebe luz. Como quem suga o
mistério da vida. Depois de saciado, sorriu matreiro. Se abriu numa anagogia
que não cabia num rosto tão pequeno. Foi nesse momento que eu, ainda montado no
muro como um cavaleiro do absurdo, entendi tudo. O lugar onde a bondosa se
deteve, não era uma simples calçada de rua. Era um altar. Era o palco. Era o
ventre. E eu, sem saber, me transformara em testemunha de um milagre. O menino
se levantou, olhou para nós com olhos de estrela e disse: “Obrigado. Agora
posso partir.”
E, de fato, ele se
foi. Subiu. Literalmente. Como se os pés fossem feitos de magia. Como se o
corpo magro e desnutrido fosse moldado de anjos em festa. Virou querubim diante
dos nossos olhos. A vizinhança, que me criticava por causa da minha cavalgada
metafórica, caiu em prantos. Dona Lourdes do boteco, desmaiou. Seu Genival da
farmácia filmou tudo e postou com a legenda: “Menino vira anjo após mamar em
mulher santa. Vejam antes que apaguem.”
A polícia chegou,
claro. Sempre chega. Dessa vez não prendeu ninguém. O delegado olhou para a
mulher, depois para o céu, por fim, olhou para mim estupefatado no muro como um
gato tentando esconder o rabo. Após isso, voltou a perscrutar de novo para a
mulher e desabafou: “Tem coisa que nem o Código Penal explica.”
Desde então, dizem os
que souberam da história, tudo mudou. Se transformou da água para o vinho. O
muro — ah, o muro — onde aquela linda moça parou e o chão onde se sentou e
alimentou o pequeno faminto, virou ponto turístico. Tem até uma placa, em
letras garrafais:
“AQUI UM DEUS EM FORMA
DE MENINO JESUS MAMOU O MILAGRE. E DEPOIS GLORIOSAMENTE ELE SUBIU AOS CÉUS.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Barretos, interior de São Paulo, 26-7-2025
Tipo assim, quando rosnam as demências distantes
Por todos os corpos ocultos e insepultos
Para não deixarem morrer as poucas alegrias de um coração solitário
Por onde andam todos os meus filhos?
O Cérbero guardião de um mundo impenetrável
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