Aparecido Raimundo de Souza
Certamente encontrarei uma história familiar, tipo
a de um avô que, antes de morrer, deixou pistas sobre algo sepultado no quintal
de sua casa, não necessariamente um cadáver, mas talvez uma culpa que ele não
conseguiu engolir com um prato de feijão com arroz. Posso me embrenhar por narrativas reflexivas,
explorando como lidar com o que ocultamos ou enterramos dentro de nós mesmos.
Obviamente haverá um suspense sutil, umas tantas e quantas revelações criando
vida aos poucos, todas, elegantemente com climas de mistérios, sem precisarem
ser explícitas ou macabras. Terminaria com um belo humor sombrio, ou seja,
“ponto finalizaria” com uma crônica sarcástica sobre como todo mundo tem dentro
de si, ou num canto qualquer da casa, “ossadas” em alguns desvãos do piso
azulejado. Enfim, num lugar inacessível e bem cimentado aos curiosos e
bisbilhoteiros que alimentam a mania da curiosidade aflorada.
Pretendo mergulhar nessa piscina de universo cheio de metáforas com um ar do mais puro impacto. A ideia dos “cadáveres ocultos” como os segredos que a sociedade enfurna, a mim me parece ser um convite para refletir, provocar e emocionar, senão a nós mesmos, os infames e desgraçados que nos cercam. Os antigos costumavam dizer que “os defuntos escondidos sempre encontram um jeito de emergirem de onde vieram”. Às vezes, não são corpos, mas um calhamaço de documentos ou de silêncios oriundos de pactos ancestrais. São, lado outro, histórias que foram engavetadas com fitas adesivas e boas pitadas de vergonha, esperando que o tempo fosse suficiente para apagarem as suas digitais. Na cidade onde cresci, por exemplo, havia um terreno grandioso maior que um campo de futebol que ninguém pisava.
Diziam que ali morava o esquecimento perpétuo e os
restos mortais de familiares que por algum motivo resolveram dar adeus mais
cedo. E, de fato, ali repousavam, além de corpos em decomposição, verdades que
a vizinhança preferiu não escavar: o desvio de verba do hospital infantil, a
nova praça que foi construída em tempo recorde, o sumiço de um político local
tido como “linha dura,” e os gritos abafados dos corruptos que escapavam à
noite do velho prédio do grupo escolar abandonado. Cada um sabia de algo, e todos
debandavam e se escudavam na lorota de “não terem conhecimento de porra
nenhuma”. A prefeitura, anos atrás, tentou vender um terreno próximo à praça da
matriz da padroeira, como um espaço “mamão com açúcar” para um centro cultural.
Fez campanha, imprimiu panfletos e colocou uma placa com a palavra “FUTURO.””
O material, enferrujou e se fez estuporado. Até
hoje, ainda está lá, uma ironia presente e desgastada com letras garrafais. Nas
feiras de domingo, o assunto sempre escorregava entre as bananas e os legumes.
“Melhor deixar quieto,” dizia o seu Francisco da banca de verduras e legumes,
um longevo que já não tinha dentes. Apesar desse descaso bucal, referido
cidadão guardava mais segredos que todas as palavras ditas em seus oitenta e
tantos anos de vida. Dona Lurdes, a primeira parteira do hospital, hoje aposentada,
jura por tudo o que é mais sagrado, ter visto inúmeras vezes homens cavando
aqui e acolá, fatos que sempre acontecia tardão da noite, porém, ninguém se
dava ao luxo de parar para ouvir o que ela tinha a dizer. E nesses idos, quem
escutava ou via demais, (lembrando que essas ideias absurdas sobrevivem até
nossos dias, sem tirar, nem “destirar,” e geralmente acabavam ou mais bem
explicado, acabam, dependendo do ocorrido, culminando com sete palmos de terra
nos cornos do focinho).
O que ninguém conta é que todo mundo tem uma pá,
uma enxada e uma picareta imaginárias dentro de casa — só não sabe que as usam
diariamente. Em outras palavras, encerramos a todo instante, a sete palmos, dia
a dia, dores as mais atrozes. Fazemos sepultos simbólicos, arranjamos culpas
que nem são nossas, tudo para não sentirmos o cheiro da fedentina que paira
sobre o céu lindo da cidade. Tem coisa que nem o tempo consegue digerir. Os
“enterros” que trago em meu texto carregam, em seus caixões, um simbolismo profundo
— não são apenas ações físicas, mas metáforas para lá de estonteantes para
corroborarem os “mecanismos de negação e ocultamento” que a sociedade, como um
todo, no seu dia a dia, pratica coletivamente. Seria, grosso modo, uma “negação
de esquecimento.” Enterrar algo contrário às leis naturais, significa afastá-lo
das vistas, do convívio e da consciência.
Os sepultamentos que aqui menciono, dizem
abertamente daquilo que a comunidade se recusa a encarar — apenas como rápidas
pinceladas, crimes os mais diversos, corrupções a dar com paus e pedras,
memórias dolorosas e etc. A multidão, ou melhor dito, o povo, carrega dentro de
si, um silêncio cúmplice: Cada “cadáver” soterrado simboliza um pacto
pasmaceiro, como se o simples ato de ignorar fosse o bastante para dealvar
todas as culpas. Atrelado a esse mutismo, surgem como moscas varejeiras as
memórias reprimidas. Ao encovar eventos, os personagens escondem por debaixo
dos tapetes, sentimentos, traumas e responsabilidades. É um ato de proteção
emocional, mas, obviamente, se trazidos á baila, poderiam ser também uma forma
tresloucada de perpetuação da injustiça.
Já não querendo falar da desumanização. Quando as
questiúnculas viram “cadáveres”, eles perdem as suas nuances — se transformam
apenas em algo escroto, algo que deve e precisa continuar escondido. Portanto,
essas obscuridades não passíveis de compreensão ou atos alheatórios que
poderiam ser resolvidos, mas não o são, se propagam à mercê de um “nada” a ser
feito. Existe um inimigo que supera os demais. O Tempo. Falo nele, como
cúmplice: O terreno baldio e a placa enferrujada mostram que o tempo não limpa
tudo — às vezes, apenas camufla. O passado mal resolvido, continua a fermentar
debaixo da terra. No fundo, meu texto questiona: o que estamos enterrando hoje,
enquanto olhamos para o outro lado? Essa metáfora pode se aplicar a temas como
racismo estrutural, violência negligenciada, feminicídio, pedofilia,
governadores corruptos, políticos salafrários, ou até conflitos internos, de
poucas montas que fingimos não existirem.
Na última eleição, dando um exemplo típico de uma
putaria que se fez eterna, prometeram reformar a praça ao lado do terreno que
acima mencionei. Trocariam os bancos, refariam o calçamento, colocariam
brinquedos para as crianças, fariam uma academia para os que não podem pagar
uma tradicional, e pintariam um mural com todos os “valores da comunidade”. Mas
acreditem: foi só tinta sobre o mofo. A obra parou antes da terceira camada e
os tijolos empilhados viraram “casas abrigo numa improvisação agourenta” para
moradores de rua, ratos, cobras, pombos e lembranças. A cidade seguiu adiante
como quem anda com os olhos fechados. Entretanto, o passado tem raízes — e elas
furaram o asfalto. Uma infiltração em face de um cano da companhia de água
abriu o chão do antigo mercado, revelando ossos. Esqueletos sem nomes, sem
velas, sem registros.
A imprensa veio, fez um estardalhaço dos diabos,
mas tudo o que foi dito, escrito e fotografado, não prosperou. Os donos do
poder local cobriram tudo de novo, como quem fecha uma gaveta com segredos que
não cabem num diário, e pior, enfiaram as chaves nos olhos de seus respectivos
cus enlameados de cocô. A verdade é que todo mundo tem um cemitério invisível
dentro de si. Uns mais discretos, outros alardeados em manchetes. E o ”mais
ultrajoso”, é que a gente aprende a conviver com o cheiro detestável. O olfato
moral se acostuma, como quem se adapta ao bolor da casa antiga. Talvez seja por
isso que ninguém contesta quando dizem que não há nada lá. Porque a gente
prefere o silêncio sepulcral aos ecos das perguntas. E o tempo — esse conivente
de luxo — continua a sua obra: transformando cadáveres em abstrações, crimes em
estatísticas e dores as mais aviltantes em paisagens.
Desfecho: “O cheiro acre do que não se fala”. Foi
numa tarde morna, quando o sol já não prometia mais nada, que o terreno decidiu
escancarar a língua. O chão afundou por causa da chuva, revelando algo que não
se constituía somente em ossos — se fazia em reconhecimento. Entre os
escombros, apareceu uma aliança, documentos com selos oficiais, um retrato
queimado pela umidade. O pequeno lugarejo não podia mais fingir. Os jornais
voltaram, mas desta vez foram os jovens que puxaram o assunto. Criaram um “grupo
de investigação comunitária,” abriram arquivos, entrevistaram os esquecidos.
Descobriram que dona Célia, a até então “desaparecida,” denunciara um esquema
que envolvia políticos ainda mamando em seus cargos. A parteira dona Lurdes,
antes desacreditada, virou testemunha-chave.
Seu Francisco desdentado, deixou uma carta antes de
partir para a terra dos pés juntos — um relato que desmontava décadas do mais
puro silêncio. A reviravolta não foi a descoberta, mas a decisão de contar. De
transformar os ossos em narrativas. O terreno virou memorial, não por decreto,
mas por insistência. Escreveram nomes em placas improvisadas, plantaram árvores
em cada marca de ausência. E naquele lugar onde morava o esquecimento, cresceu
o incômodo. O incômodo virou discurso, o discurso virou mudança. Não por
justiça oficial — mas por uma justiça possível. Porque até os mortos querem
lugar de fala. Aqui está a versão integrada da minha crônica, com todos os
elementos reunidos e uma referência sutil e inteligente ao livro “Incidente em
Antares,” de Érico Veríssimo, onde os
mortos (já mencionei esse livro em outro texto meu) se recusavam a permanecer
calados diante das injustiças.
Pois bem! Dizem que os falecidos ocultos sempre
encontram um jeito de emergir, de voltar à tona. Às vezes, não são corpos — são
segredos, documentos mofados, silêncios herdados, pactos não escritos. São
histórias que foram engavetadas (como disse acima E AGORA VOLTO A REPETIR) com
fita adesiva e vergonha, esperando que o tempo fosse suficiente para apagar
todas as suas digitais. Na cidade onde cresci, continuo em repeteco, havia um
terreno que ninguém pisava. Diziam que ali morava o esquecimento. E de fato,
ali repousavam verdades que a vizinhança preferiu não escavar: o desvio de
verba do hospital, o sumiço de dona Célia e os gritos abafados dos larápios e
santinhos do pau oco que escaparam à noite do grupo escolar abandonado.
Cada um sabia de algo, e todos fingiam não saberem
de nada. Se me permitem, aqui volto a inserir pedaços do que acima escrevi. A
prefeitura, anos atrás, tentou vender o terreno como espaço para um centro
cultural. Fez campanha, distribuiu panfletos e colocou uma placa com a palavra
“FUTURO”. A placa, enferrujada e torta, ainda está lá — ironia com letras
garrafais. E quem ouve demais, acaba comendo terra suja também. O que ninguém
conta é que todo mundo tem uma pá imaginária em casa — só não sabe que a usa.
Mandamos para os confins dos “Sete palmos” as barbáries, as sacanagens.
Enterramos dores em oferendas simbólicas, culpas alheias que nem são nossas,
tudo para não encararmos o cheiro acre. Mas tem coisa que nem o tempo consegue
aguentar ou suportar.
A cidade seguiu adiante como quem anda com os olhos
fechados. Todavia, o passado tem raízes — e raízes furaram o asfalto. Foi numa
tarde morna, quando o sol já não prometia mais nada, que o terreno decidiu
falar. A chuva, à cântaros, caiu sem aviso. Afundou o chão, revelando ossos e
objetos: uma aliança, documentos com selos oficiais, um retrato queimado pela
umidade. A comunidade de pés e mãos amarradas, não podia mais fingir. Os
jornais voltaram, mas foram os jovens que puxaram o assunto. Criaram um grupo
de investigação comunitária, abriram arquivos, entrevistaram os “esquecidos.”
Dona Célia ressurgiu do seu “sumiço” não como vítima, mas como denunciante
silenciada. A parteira Lurdes virou testemunha. Seu Francisco, antes de bater
com as doze, deixou uma carta que desmontava décadas da mais sádica putaria.
Foi aí que lembrei repetindo o acima já dito, do
romance “Incidente em Antares”. Lá, os sem vozes do gaúcho Érico Veríssimo se
levantaram para exigirem o que lhes foi negado: “reconhecimento, gritos
sufocados, justiça.” Aqui, não foi tão
espetacular — mas, no geral, um alento real. Porque até os mortos (mais dias,
menos dias) quererão lugar para vomitarem o que não chegou a ser dito. O
terreno virou memorial, tipo o de 11 de setembro, aos pés da nova Torre no lugar
dos espigões que formavam o Word Trade Center. Foi uma espécie de
“memorial-documento” trazido à baila não por decreto, mas por insistência.
Escreveram nomes em placas improvisadas, plantaram árvores em cada ausência. E
naquele lugar onde morava o esquecimento do “nada além” , cresceu o incômodo.
O desagradável virou discurso, o discurso virou
mudança. Não por justiça oficial, mas por justiça possível. Os enterros e os
velórios seguem, obviamente, no mesmo ritmo. Isso é uma verdade insofismável.
Avança, porém, com o foco inteiramente mudado. Os vândalos do poder estão
enterrando o Brasil, sufocando as suas ideologias, fulminando com as suas
reservas de hombridade e de seriedade. Logo a nação inteira se transformará
numa multidão de enterrados, como em tempos idos, ocorreu. Por conta do medo,
meteremos as mãos nos fundilhos de nossas bundas, arrancaremos as nossas
virgindades e certamente, diante do inevitável, tomaremos alguma posição mais
forte e pujante.
Talvez criemos vergonha e berraremos: “E agora,
seus filhos de merda, seus canalhas e safardanas, agora que tomamos consciência
de toda essa cachorrada, viemos dispostos a partir para cima de todos vocês,
desgraçados e infames que defecam fedido em todos os espaços da Capital do
Brasil. Viemos para fazê-los ouvirem, ainda que a poder de porradas e safanões,
o que todos os filhos desse país sofrido temos a dizer. O que deixamos
enterrado e entalado até o presente momento, enquanto olhávamos para o outro lado
como um bando de filhos de covardes. Saibam seus filhos de raparigas e putas,
que criamos coragem para dar um basta definitivo em toda essa bandalheira que
vocês transformaram, até agora o nosso querido e amado rincão. Pretendemos
mandá-los sem mais delongas, para os quintos do inferno.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Bernardo do Campo. São Paulo, 19-8-2025
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