terça-feira, 26 de março de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Desvio de conduta

Aparecido Raimundo de Souza 

O PACIENTE TERMINAL
da enfermaria 69 recebe, naquela manhã bonita de sol radiante, a visita de um padre:
— Bom dia, meu filho. Desculpe estar aqui logo cedo. Infelizmente a minha visita não é das melhores...
O inerme, todavia, não se dá por vencido. Sorri e se abre em mesuras diante da figura sotainada do recém-chegado:
— Bom dia, seu clérigo. Esquece as noticias ruins. Ainda vou durar muito. Aguento mais umas quinze ou vinte diárias.
O sacerdote, rosto fechado, insiste:
— Falei com seu médico. Aliás, foi a pedido dele que vim ter com a sua pessoa:
— Seu embatinado, se ele falou que estou prestes a comer capim pela raiz, perdeu seu tempo...
— Engano seu, meu filho. O doutor Aristeu Bevilláqua sabe das coisas. Quando manda me chamar... é caixão na certa.
— Desta vez ele deu com os burros n’água.

O representante da igreja parece disposto a deixar o derreado com as suas poucas esperanças para baixo:
— Aposto com o senhor que seu quadro clínico está bastante precário. Suas horas estão contadas... a sua debilitação está às claras:
— Já que o senhor falou em aposta, vamos apostar? Quanto?
— Meu amado filho, eu sou um Levita. E, como tal, literalmente contra jogos e apostas. Fique sabendo que jogo, seja ele qual for a modalidade é pecado.
Seguro de si, o morubundo contra-ataca:
— Agourar a morte de algúem, o senhor não acha, que é um tremendo e grande pecado?
O religioso se benze e abre a sua Bíblia:
— Meu filho, toda a equipe médica que está cuidando do seu caso, sabe que o mal que lhe atormenta os fundilhos dos ossos o coloca na beira da sepultura. Digo mais: dentro dela, literalmente...
— O senhor é um padreco estranho. Acaso brigou com Deus?

— Por que diz isso, meu amado filho?
— Acho que a sua presença aqui deveria ser para me colocar para cima. Me trazer alento e conforto. Me revigorar. Não me empurrar para os braços da desgranhenta. Olhe para meu estado. Careço de bons fluidos, de energia positiva...
O consagrado, apesar dessas palavras segue disposto a desencorajar o infeliz:
— Meu amado irmão, não gosto de mentir para meus paroquianos. Seria como se eu estivesse traindo aquele a quem represento. Agora, por favor, eleve seus pensamentos ao Pai.
O azoinado tenta levar as palavras do jacobino para o lado da brincadeira:
— Meu pai já era seu patife de meia tigela.
— Faço referência ao Senhor Jesus, o nosso Cristo Salvador.
— Ah...!
O presbítero se prepara para iniciar a liturgia:
— Vamos, feche os olhos...

O valetudinário embora esteja com a saúde vergastada, para completar seu estado crítico, capenga de um rosário de dores as mais contundentes. Por assim, completamente esfalfado das forças, aleijado dos olhos e surdo das pernas, num esforço hercúleo tenta levar seus momentos de desconfortos para um patamar menos degradante e agressivo, transformando seu quadro sistêmico irreversível numa espécie de piada sem graça:
— De maneira alguma, seu moço. Tenho medo de escuro.
— Não se preocupe. Não tema – Acorre o piedoso. — Eu estarei aqui, a seu lado, para lhe ajudar na passagem.
O esbulhado da plenitude do ar que respira emite um riso débil como se fizesse um esforço sobre-humano:
— Seu imbecil, tenho quase 99 anos. Não pago mais passagem. Se o prezado olhar nas minhas coisas... verá que tenho na carteira de documentos um cartãozinho “passe livre.”
— Meu querido e amado –, insiste o compadecido da batina. Falo da sua passagem para o Alto Céu. Dentro em breve, estará saindo daqui... como diria, voando...

O cadavérico volta a tentar sorrir mas a sua ousadia inutilizada sai ainda mais desfalecida e deformada:
— Outro engano seu, traidor do Pai Supremo. Tenho medo de avião. Sofro da síndrome de Belchior.
— Síndrome de quem?
— De Belchior, o autor daquela música “Medo de avião,” cuja letra diz assim: “Foi com medo de avião... que eu segurei pela primeira vez na sua mão...”
— Quem falou em avião?
— O senhor.
— Eu?
— Sim o senhor. Seu mané.
— Eu não falei em avião...
Apesar de quase não se aguentar, o amofinado não desiste:
— O senhor deixou claro que eu sairei daqui voando... se não tenho asas, como se dará tal mágica? Acaso tenho parentesco com Icaro?

— Eu disse voar no sentido de ir em direção às mansões celestiais.
— O senhor, por acaso, sabe como chegarei até Ele?
— Claro, meu filho. Assim que fechar os olhos, dormirá na paz do Altíssimo e Senhor de Todas as Coisas.
— Impossível...
— Como assim? Para Deus, nada é impossível.
O deplorável segue firme na sua determinação de não entregar os pontos:
— Seu “moço,” faço referência a fechar os olhos e dormir. Esta noite, por azar, saí do ar como um nababo. Estou sem sono. Desista. Volte para a sua igreja.
O pontífice, mostra certa irritação:
— Como representante de Deus aqui na Terra, jamais desisto das minhas missões. Voce faz parte delas. Olha, assim que me der a mão, rezarmos, e eu irei embora.
— Temos um novo problema que acabou de surgir. Não sei rezar.
— Não seja essa a sua preocupação. Eu lhe ensino...
— Estou velho demais para aprender. Mal enxergo a minha caduquice. O senhor mesmo, acredite, estou lhe vendo apenas como um ligeiro vulto embranquiçado. E perceba que o dia acabou de começar...

O pastor abaixa a cabeça, se benze e faz uma pequena oração:
— Não tema. Me dê a sua mão.
— Que isso, seu imberbe! – Está me estranhando? – Depois de velho acha que pretendo sair do armário e me juntar a um medíocre e ainda por cima desbarbado? Nem morta!
— O seu coração não está aberto. Abra seu coração. Se entregue à Deus. Não resista.
O pobre homem estratificado segue chalaceador:
— Coração... coração. Seu padre meia-boca, não seria melhor o senhor acionar à enfermeira e ela vir até aqui agarrada nos colhões do meu cardiologista?
— Meu filho, não zombe. Seu caso é sério. Vamos, me dê a sua mão.

O mazelento sai, então, do sério. Não é para menos. Seu estado enlanguescido o coloca fora de controle:
— Seu bunda suja, quer saber de uma coisa? Vá plantar batatas...
O confessor mostra certa algidez ao tempo em que franze o cenho:
— Meu filho, só estou querendo ajudar...
— Me ajudar dessa forma? Me encalistando? Quer saber? Pra mim chega. Vá de reto, vá de reto...

O abuna, convícto de seu encargo, do seu compromisso não deveria, jamais... entretanto, acaba perdendo as estribeiras. Não fala, berra:
— Ora, seu mal educado. Quer saber digo eu, corroborando. Vá para os quintos do inferno. Seu ateu do diabo. Nada mais me prende aqui. Passe bem. O tinhoso que o carregue.
O fraco e inválido, e pior, fora de si, tenta se levantar. Não consegue. A voz embargada, quase sufocada por um engasgo repentino, não perde a pose:
— Agora o senhor acertou, seu falso Leão de Jubá... digo, de Judá. Na mosca. Daqui a pouco vou estar falando com ele.
— Com ele? Ele quem, seu monte de estrume?
— Com o Capiroto, seu bucéfalo. Com quem mais? Quer mandar algum recado? Aproveita que levo e entrego pessoalmente...
O franciscano vira as costas e se afasta do longevo se mordendo de raiva. Contudo, antes de cruzar a porta definitivamente, se vira para o estiolado, as palavras vociferadamente consternadas:
— Quer saber, velho rabujento? Vá para a puta que o pariu.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 26-3-2024 

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