Reinaldo Azevedo
Vai abaixo um dos posts
mais longos da história deste blog — talvez o mais: 32 mil toques e um
pouquinho. Podem começar a fugir se for o caso, embora os meus leitores não
sejam disso e prefiram texto a figurinha, não é mesmo? É diretamente
proporcional à repulsa que senti ao ler um artigo na Folha de S. Paulo sobre a
mudança da maioridade penal de 18 para 16 anos. Vai tudo explicado aí abaixo.
*
Neste domingo, a Folha de S. Paulo publicou um
artigo que, quero crer, será, um dia, considerado
um marco no jornalismo brasileiro. Mas suspeito que não figurará na lista dos
grandes momentos nem da Folha nem do próprio jornalismo em razão de suas
implicações morais, éticas, filosóficas, o que se queira. Sob qualquer ponto de
vista que adotemos — e convoquei também algumas das boas reflexões disponíveis
sobre o perdão —, a publicação do texto ultrapassa fronteiras que, tudo me diz,
deveriam ter sido preservadas. Vamos lá.
Luíza Pastor, 56 anos,
jornalista, foi estuprada aos 19 anos, em 1976. Ela narra as circunstâncias.
Seu estuprador era um menor de idade. No artigo que escreveu para o jornal (ou
depoimento transcrito em primeira pessoa, não sei qual foi o procedimento), ela
condena com severidade a proposta de reduzir a maioridade penal de 18 para 16
anos.
Eu poderia escrever apenas um
comentário sobre o seu texto, fazendo alusões e citando trechos. Mas sempre
prefiro, em casos que considero realmente importantes ou graves, reproduzir o
artigo para que o leitor tenha acesso à fonte, ao estímulo que originou a minha
escrita. O jornalista Marcelo Coelho, certa feita, sugeriu que é um
procedimento autoritário. Não é, não! Autoritário seria omitir do leitor
eventuais sutilezas que podem escapar a este articulista. Vamos lá.
O texto publicado traz uma
introdução do próprio jornal que, quero crer, levará o corpo editorial da
Folha, algum dia, a ao menos se questionar: “Agimos certo? Isso é moral e
eticamente aceitável?”. Essa introdução segue em preto mesmo. Todos os meus
comentários, doravante, seguirão em azul.
*
O principal argumento dos
defensores da redução da maioridade penal pode ser sintetizado em uma frase:
“Queria ver se fosse com você”.
Pois foi com a jornalista
Luiza Pastor, 56, casada e mãe de uma menina. Com apenas 19 anos, Luiza, ainda
estudante da USP, foi estuprada por um garoto menor de idade. Experiência tão
traumática, entretanto, não a transformou em defensora da redução da maioridade
penal.
Há mulheres e homens
inteligentes no comando da Folha. Certamente sabem que é um truque grosseiro
reduzir a opinião de adversários numa contenda a um único argumento ou a um
“argumento principal”. É uma das maneiras de tentar ganhar um debate mesmo sem
ter razão. Nesse caso, basta escolher a proposição mais frágil do outro, para a
qual julgamos ter, de antemão, uma resposta, e pronto! Declare-se a vitória!
Ignoro que esse “Queria ver se
fosse com você” seja o “principal argumento” de quem defende a redução da
maioridade penal. Até porque não há argumento nenhum aí. Ao contrário: isso é
um não argumento, e dos mais fáceis, dos mais cretinos até. Porque bastaria,
então, que aparecesse o tal “você” afirmando o oposto do que sugeriu o
proponente, e sua tese desabaria. A Folha inventou um “ser coletivo” que tem
aquela pergunta como “principal argumento” para dar a suposta resposta
definitiva.
O segundo parágrafo da
introdução da Folha corre o risco, se levada como uma tese geral do direito, de
nos empurrar para um pântano moral — e ético — sem retorno. Sem contar que
exercita o método de argumentação (e não o argumento) que, segundo entendi,
contesta. Começo por esse segundo aspecto. O jornal, entendo, censura a
personalização do debate. A tese de base, parece-me, é negar a importância das
questões particulares, pessoais, localizadas, na definição de uma política de
segurança pública. A Folha parte do princípio, isto é inequívoco, de que
a indagação “E se fosse com você?” não é boa. Mas, se não é boa, que sentido
faz publicar o texto de uma mulher que foi estuprada por um menor e é contra a
redução da maioridade penal?