Aparecido Raimundo de Souza
Me lembro
como se fosse um domingo de sol dessa rua (naquele tempo) estreita, aberta em
chão batido, de terra meio que avermelhada, onde as pedras misturadas ao pó
pareciam sussurrar segredos de velhos janeiros devorados pelo esquecimento. As
casas antigas (desse meu e do outro lado), com suas janelas de madeira e flores
coloridas nos parapeitos, guardavam histórias de amores e desencontros.
As crianças
corriam descalças; rindo alto; enquanto os adultos trocavam cúmplices olhares.
Um tempo pastoril e bucólico em que as manhãs se desmanchavam bisonhas, as
tardes se quedavam longas e o sol, como um menino grandioso (por precisar se
esconder) se acanhava devagar, tímido e assustadiço por sinalizar que “estava
indo dormir e somente num porvir horas depois se faria, de novo, majestoso e
magnífico’.
E, de fato,
assim acontecia. Num repente, ele tingia todo o firmamento de tons alaranjados.
As conversas com os domiciliados aconteciam sem pressa. Os abraços se formavam
apertados, como se quisessem conter o tempo. Entretanto, o tempo, esse
implacável viajante, não nunca se deteve por aqui. Aliás, sequer alguma vez
procrastinou.
Como nos
velhos janeiros, seguiu avançando, deixando para trás as risadas, os sonhos, as
tardes alegres, as cadeiras postas ao longo das calçadas em frente aos portões.
Mesma pancada, as efusividades dos abraços e também, em igual norte, as mãos
dadas, os namoros românticos, as barrigas de nove meses, os olhares atentos de
pais e mães preocupados com as novas vidas que logo se fariam estupendas.
As moradias deixaram de ser simples casas. São agora vivendas dinastiadas por ocupantes esquisitos e pomposos. Gente fina, de dinheiro nos bolsos e nos bancos. Essas mansões ostentam janelas envidraçadas e portas soberbas cheias de “não me toquem.” As pedras, o pó e o barro avermelhado deram lugar ao asfalto. As crianças que brincavam (com as minhas), cresceram e se espalharam pelo mundo.
Hoje, a
minha antiga rua estreita é apenas um mimo para quem ainda conserva lembranças.
Tudo por aqui e não só aqui, em toda a redondeza, as vielas e becos viraram
criaturas de peles negras. A maioria ganhou calçadas, árvores e lixeiras
espalhadas. A prefeitura plantou em toda a sua extensão, postes, com
transformadores e um emaranhado de fios esticados.
Os rostos
(que bem me lembro), se abriam em confraternizações, são apenas sombras difusas
bailando no carrossel da minha memória. O passado se dissolveu como as tintas
de uma porção de quadros esquecidos num canto ermo de um museu sem registro.
Mesmo tapa no rosto, do bonito chamativo e da luminosidade de seus pintores,
restaram apenas os contornos borrados em paredes senilizadas.
Apesar
desses entraves –, ainda vejo –, juro por Deus, ainda enxergo com meus
esbugalhos cansados, existir algo de mágico do antigo passado. Verdade. Falo
sério! Ele nos envolve como um cobertor quente nas noites frias. Nos mata a
sede como a água geladinha guardadas em moringas. As lembranças nos acariciam
trazendo em suas bagagens cheiros, sabores, falas e choros, gritos e sensações.
Por um
instante, saio do meu chão e sou transportado de volta à àquela longínqua rua
de concepção estreita. Como num passe de mágica, me vejo envolvido às risadas e
aos abraços. Talvez o passado não seja apenas o que ficou no ontem, ou se
degringolou no para “não sei onde.” Quem sabe, ele seja um lugar longe da
terra, onde eu possa (como agora) regredir, recuar, retroceder sempre que
quiser.
Uma espécie
de “refúgio-amparo,” um “abrigo-proteção,” uma “hospedaria-quartel,’ onde,
quiçá, as minhas histórias ganhem vida e os semblantes enrugados e decrepitados
de uma existência inteira (tanto os que se foram, como os que ainda
agradecem pelo ar que respiram) se rejuvenesçam e se iluminam novamente.
Assim,
sentado na varada, em minha cadeira de balanço (presente de papai), tomando meu
café e comendo meu pão de queijo, deixo o tempo fluir. Sei que ele leva consigo
o que não posso segurar. Todavia, apesar dos contratempos, me homenageia com o
deslumbramento da saudade –, essa doce companheira que não me larga nem vai
embora. Afinal, o passado não está apenas nas pedras, no pó, ou no barro dessa
rua de terra, ou pior, no oco dos pisos sujos das casas “outrorais.”
Em verdade,
ele se faz pulsante em mim. Se condensa, se espalha, se agarra de unhas e
dentes, fundido, britado, entupigaitado em cada gota das “dádivas-brindes,” e
dos “assentamentos-regalados” que fazem parte do meu todo como ser humano. Esse
passado, ah, esse passado... por tudo quanto é sagrado. Ele vai um pouco aquém:
se materializa a cada minuto num turbilhão de “cédulas-presentes”.
Jorra do
profundo mais divorciado do meu âmago e, “em contínuo.” Alimenta com Esperanças
fartas e abundantes, os elanguescidos fios de Ariadne espalhados por todos os
desvãos e reentrâncias dos meus olhos. É o “segredo-pecúlio,” a fórmula que me
mantem vivo, como uma reserva benfazeja que tenho avivada dento de mim. Sem
falar na plena convicção, que perdurará enquanto o Criador me deixar vivo e em
sintonia meridiana com as complacências que transbordam de suas poderosas mãos
divinas.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santa Rita do Passa Quatro,
interior de São Paulo, 29-3-2024
Anteriores:
Desvio de conduta
Tudo o que é mal começado...
O amor às vezes dança na contramão do inverossímil
Escarlate sob o cinza
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-