Carina Bratt
A POMBINHA branca vive num dos terminais de ônibus da cidade que acessa uma das muitas estações do metrô. Quando se recolhe, aconchega o cansaço se aboletando no alto da estrutura que cobre o pátio dos coletivos que alimentam os mais diversificados bairros existentes por todo o centro da enorme metrópole. A pequena ‘Columba Livia’ não tem certidão de nascimento. Em razão disso, a menina Ellen resolveu batiza-la com o nome de ‘Sofridinha.’ E por qual motivo esse nome meio que estranho e desusado? Em face da pobrezinha estar com a perninha esquerda machucada, ou seja, um incidente possivelmente causado por algum descuidado. Um alguém sem rosto, na afluência triturante do ir e vir, lhe deixou os dedinhos dos pés (kikikikiki) que servem de suporte, em pandarecos.
Por assim, para que possa transitar de um lado para outro corretamente e
sem nenhum tipo de dificuldade, manquitoleia. As outras coirmãs da mesma
linhagem, ou melhor dito, da família Columbiforme, a encaram com pena –, não só pena –, com um certo pesar de meiguice e carinho. Gostariam de fazer alguma
coisa, mas não passam de meras pombinhas sem um pingo de imaginação. Não existe
nada mais fora de órbita que pombos sem contexto de imaginação. Em contrário,
‘Sofridinha’ (apesar da desventura), não se deixa abater. Todas as manhãs, a
danadinha observa as pessoas entrando e saindo do terminal nas bocas
escancaradas que desaguam do metrô. Para quem não sabe, metrô é aquele trem que
passa o tempo todo entrando pelo cano.
Cabeça dura, esse meio de transporte não aprende, nem toma juízo.
Voltando aos protagonistas, esses são seres (de ambos os sexos) que trafegam
apressados numa afobação descomedida. Nessa hora, quase seis da manhã,
multidões tem pressa de regressarem a seus lares. Uma leva idêntica se
converge, desesperada, para os ‘pontos-chaves,’ onde os ônibus encostados as
levarão para os locais onde deverão descer, bater os cartões de ponto e
começarem a labuta de mais um cansativo e desgastante cotidiano. ‘Sofridinha’ entende
perfeitamente que ali está a sua chance de encontrar algo diferente para comer.
Algo variado. O imenso chão de porcelanato e emborrachamento se constitui na
melhor mesa e, claro, no mais saudável e ‘farto cardápio’ para a escolha das
refeições.
As ‘gororobas’ se manifestam em reduplicações incríveis. A toda hora, restos de bolos e pasteis, quibes pela metade, e incrivelmente marmitas com punhados de arroz e feijão misturados a excelentes nacos de carne, e macarrão são deixados ou esquecidos. Parece mentira, mas não é. Às vezes (não sempre) a galera, sem perceber descura, pelo caminho, estilhaços de galinhas e peixes entre outros itens que compõem o imenso rol das sagradas multiplicidades. Extremamente faminta, ‘Sofridinha’ se posiciona sobre esses banquetes (as garrinhas afiadas tentando bica-los) a qualquer custo. Dias atrás, enquanto se debatia tentando mandar para o estômago um pedaço de pizza, em contínuo, uma jovem misturada ao furdunço saiu de uma porta que acessava um dos muitos pontos de vendas pilotando um carrinho de bebê.
A geringonça, além da bebezinha ocupante, se fazia cheia de migalhas,
restos à gosto estupendo de seu paladar ávido por saciar uma fome que parecia
não dar trégua. De repente, enquanto seguia em frente, uma das rodinhas se fez
submissada num bocado de lixo espalhado (onde, aliás, não deveria), apesar de
se fazer visível um vastíssimo número de ‘recipientes-lixeiras’ destinadas aos
‘bota-fora.’ Num primeiro momento, a mãe que movia os controles do carrinho,
desviando de trombar com os mais de trocentos usuários, ao pensar em demovê-lo
do meio dos entulhos, não alcançou seu intento. Por conta, desesperou os
ânimos, rodou a baiana. Subiu literalmente pelas paredes. Grosso modo, mandou
bala:
— Gente porca, cambada de cegos. Não sabe distinguir as cestas de lixo?
Puta que pariu!”
No trabalhoso que a beldade objetivava desembaraçar os refugos das
rodinhas, ‘Sofridinha’ com a intenção de mandar para os quintos aquela
desgranhenta que lhe matava, não só de fome, igualmente de raiva, e observando
que o piso do terminal, naquele dia, nada tinha de útil, e, menos ainda, de
aproveitável, vislumbrou a oportunidade de tirar a barriga da miséria. Com esse
pensamento da orexia buzinando em sua cabecinha de pomba, iniciou uma série de
pulinhos desajeitados sobre os assoalhados antiderrapantes. Conseguiu galgar o
entorno do carrinho dando, assim, início, a uma infinidade incalculável de
iguarias que se espalharam. Uau, que sorte tremenda! Sobejos de pães e outros
rebotalhos comíveis estavam visíveis.
A menina Ellen, encostada numa pilastra próxima, ficou surpresa ao ver
aquela pombinha com a perninha esfacelada tentando matar quem lhe fazia sofrer
os olhinhos em festa. Apesar da emoção, não a espantou. Pelo contrário. Começou
a atirar pedacinhos do lanche que levava em um espaço de sua mochila
tencionando comê-lo no intervalo do recreio da escola. Outros ‘passantes’ de
onde a mãe com a bebezinha saíra, tinham por mania, agirem da mesma forma.
Jogavam seus restos (fosse o que fosse) que acabavam sendo acolhidos por outras
pombinhas que se admitiam em voos curtos e espetacularmente traçados vindos de
todas as direções. Assim, se consumia a rotina dos dias. A menina Ellen passava
a mão na sua merenda e distribuía para os regozijos das gracinhas que a cada
raiar de um novo porvir pareciam se multiplicar.
De repente passou a ‘roubar’ alimentos das panelas e dispensas de sua
mãe para prover as charmosas avezinhas, em especial a pombinha da perninha
contundida. Outras consanguíneas, por seu turno, observavam a irmã com
curiosidade e admiração. Final das contas, ela se tornou uma espécie de
‘guerreira-vencedora’ entre as mais de cem que abundavam naquele terminal.
Meses depois, a pombinha finalmente pareceu ter dado sinais de recuperação.
Encontrou esperança não só nos apetitosos trazidos pela sua amiguinha, a menina
Ellen, como parou de se deslocar coxeando. Hoje, quem cruza pelo terminal,
certamente encontrará uma avezinha ainda diferenciada das demais tentando
ganhar seu espaço para não perecer de fome.
Efetivamente, uma inteligente, arisca e sociável vitoriosa. Sem dúvida
alguma. Em igual quadro, se defrontarão com uma coisinha linda, bonita, alegre,
ligeira, esperta, sadia e de sorriso envolvente para com a vida. Sua perninha
ainda arrasta um pouquinho. Contudo, ela não se importa. O acidente, não lhe
tirou o brilho de uma representante da PAZ. Afinal, diante de sua desdita,
encontrou uma menina de coração aberto que, no calor da sua sensibilidade, a
ajudou a manter a superação contínua de seguir respirando. A lição que fica:
devemos lembrar sempre, que as pombinhas são pequeninos mimos criados por Deus.
Em sua vidinha de ave sem lar, peleja como nós, obviamente de formas e maneiras
diferentes –, no final das contas, com os mesmos objetivos: as lutas inglórias e
causticantes pela sobrevivência.
Título e Texto: Carina Bratt, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 31-3-2024
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