domingo, 31 de março de 2024

[As danações de Carina] A criaturinha da perninha mutilada

Carina Bratt

A POMBINHA branca vive num dos terminais de ônibus da cidade que acessa uma das muitas estações do metrô. Quando se recolhe, aconchega o cansaço se aboletando no alto da estrutura que cobre o pátio dos coletivos que alimentam os mais diversificados bairros existentes por todo o centro da enorme metrópole. A pequena ‘Columba Livia’ não tem certidão de nascimento. Em razão disso, a menina Ellen resolveu batiza-la com o nome de ‘Sofridinha.’ E por qual motivo esse nome meio que estranho e desusado? Em face da pobrezinha estar com a perninha esquerda machucada, ou seja, um incidente possivelmente causado por algum descuidado. Um alguém sem rosto, na afluência triturante do ir e vir, lhe deixou os dedinhos dos pés (kikikikiki) que servem de suporte, em pandarecos.

Por assim, para que possa transitar de um lado para outro corretamente e sem nenhum tipo de dificuldade, manquitoleia. As outras coirmãs da mesma linhagem, ou melhor dito, da família Columbiforme, a encaram com pena , não só pena , com um certo pesar de meiguice e carinho. Gostariam de fazer alguma coisa, mas não passam de meras pombinhas sem um pingo de imaginação. Não existe nada mais fora de órbita que pombos sem contexto de imaginação. Em contrário, ‘Sofridinha’ (apesar da desventura), não se deixa abater. Todas as manhãs, a danadinha observa as pessoas entrando e saindo do terminal nas bocas escancaradas que desaguam do metrô. Para quem não sabe, metrô é aquele trem que passa o tempo todo entrando pelo cano.

Cabeça dura, esse meio de transporte não aprende, nem toma juízo. Voltando aos protagonistas, esses são seres (de ambos os sexos) que trafegam apressados numa afobação descomedida. Nessa hora, quase seis da manhã, multidões tem pressa de regressarem a seus lares. Uma leva idêntica se converge, desesperada, para os ‘pontos-chaves,’ onde os ônibus encostados as levarão para os locais onde deverão descer, bater os cartões de ponto e começarem a labuta de mais um cansativo e desgastante cotidiano. ‘Sofridinha’ entende perfeitamente que ali está a sua chance de encontrar algo diferente para comer. Algo variado. O imenso chão de porcelanato e emborrachamento se constitui na melhor mesa e, claro, no mais saudável e ‘farto cardápio’ para a escolha das refeições.

As ‘gororobas’ se manifestam em reduplicações incríveis. A toda hora, restos de bolos e pasteis, quibes pela metade, e incrivelmente marmitas com punhados de arroz e feijão misturados a excelentes nacos de carne, e macarrão são deixados ou esquecidos. Parece mentira, mas não é. Às vezes (não sempre) a galera, sem perceber descura, pelo caminho, estilhaços de galinhas e peixes entre outros itens que compõem o imenso rol das sagradas multiplicidades. Extremamente faminta, ‘Sofridinha’ se posiciona sobre esses banquetes (as garrinhas afiadas tentando bica-los) a qualquer custo. Dias atrás, enquanto se debatia tentando mandar para o estômago um pedaço de pizza, em contínuo, uma jovem misturada ao furdunço saiu de uma porta que acessava um dos muitos pontos de vendas pilotando um carrinho de bebê.

A geringonça, além da bebezinha ocupante, se fazia cheia de migalhas, restos à gosto estupendo de seu paladar ávido por saciar uma fome que parecia não dar trégua. De repente, enquanto seguia em frente, uma das rodinhas se fez submissada num bocado de lixo espalhado (onde, aliás, não deveria), apesar de se fazer visível um vastíssimo número de ‘recipientes-lixeiras’ destinadas aos ‘bota-fora.’ Num primeiro momento, a mãe que movia os controles do carrinho, desviando de trombar com os mais de trocentos usuários, ao pensar em demovê-lo do meio dos entulhos, não alcançou seu intento. Por conta, desesperou os ânimos, rodou a baiana. Subiu literalmente pelas paredes. Grosso modo, mandou bala:

— Gente porca, cambada de cegos. Não sabe distinguir as cestas de lixo? Puta que pariu!”

No trabalhoso que a beldade objetivava desembaraçar os refugos das rodinhas, ‘Sofridinha’ com a intenção de mandar para os quintos aquela desgranhenta que lhe matava, não só de fome, igualmente de raiva, e observando que o piso do terminal, naquele dia, nada tinha de útil, e, menos ainda, de aproveitável, vislumbrou a oportunidade de tirar a barriga da miséria. Com esse pensamento da orexia buzinando em sua cabecinha de pomba, iniciou uma série de pulinhos desajeitados sobre os assoalhados antiderrapantes. Conseguiu galgar o entorno do carrinho dando, assim, início, a uma infinidade incalculável de iguarias que se espalharam. Uau, que sorte tremenda! Sobejos de pães e outros rebotalhos comíveis estavam visíveis.

A menina Ellen, encostada numa pilastra próxima, ficou surpresa ao ver aquela pombinha com a perninha esfacelada tentando matar quem lhe fazia sofrer os olhinhos em festa. Apesar da emoção, não a espantou. Pelo contrário. Começou a atirar pedacinhos do lanche que levava em um espaço de sua mochila tencionando comê-lo no intervalo do recreio da escola. Outros ‘passantes’ de onde a mãe com a bebezinha saíra, tinham por mania, agirem da mesma forma. Jogavam seus restos (fosse o que fosse) que acabavam sendo acolhidos por outras pombinhas que se admitiam em voos curtos e espetacularmente traçados vindos de todas as direções. Assim, se consumia a rotina dos dias. A menina Ellen passava a mão na sua merenda e distribuía para os regozijos das gracinhas que a cada raiar de um novo porvir pareciam se multiplicar.

De repente passou a ‘roubar’ alimentos das panelas e dispensas de sua mãe para prover as charmosas avezinhas, em especial a pombinha da perninha contundida. Outras consanguíneas, por seu turno, observavam a irmã com curiosidade e admiração. Final das contas, ela se tornou uma espécie de ‘guerreira-vencedora’ entre as mais de cem que abundavam naquele terminal. Meses depois, a pombinha finalmente pareceu ter dado sinais de recuperação. Encontrou esperança não só nos apetitosos trazidos pela sua amiguinha, a menina Ellen, como parou de se deslocar coxeando. Hoje, quem cruza pelo terminal, certamente encontrará uma avezinha ainda diferenciada das demais tentando ganhar seu espaço para não perecer de fome.

Efetivamente, uma inteligente, arisca e sociável vitoriosa. Sem dúvida alguma. Em igual quadro, se defrontarão com uma coisinha linda, bonita, alegre, ligeira, esperta, sadia e de sorriso envolvente para com a vida. Sua perninha ainda arrasta um pouquinho. Contudo, ela não se importa. O acidente, não lhe tirou o brilho de uma representante da PAZ. Afinal, diante de sua desdita, encontrou uma menina de coração aberto que, no calor da sua sensibilidade, a ajudou a manter a superação contínua de seguir respirando. A lição que fica: devemos lembrar sempre, que as pombinhas são pequeninos mimos criados por Deus. Em sua vidinha de ave sem lar, peleja como nós, obviamente de formas e maneiras diferentes , no final das contas, com os mesmos objetivos: as lutas inglórias e causticantes pela sobrevivência.

Título e Texto: Carina Bratt, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 31-3-2024  

Anteriores: 
Pelo olho mágico 
Das canções que se fizeram eternas 
De repente, o inesperado 
[As danações de Carina – Extra] Dia da Mulher: essa combatente incansável

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-