Aparecido Raimundo de Souza
Na pequena e
bucólica Flor Mimosa, os moradores se recolheram às suas casas como puderam.
Algumas cabeças se ajeitaram sob seus guarda-chuvas; outros buscaram abrigo às
carreiras nas dependências do terminal rodoviário e na estação de trem. Igual
leva se asilou debaixo dos beirais e marquises do único mercado. Os sem
mulheres e filhos preferiram embicar para os copos das cervejas geladas da
birosca do seu Antunes. Na Praça da Caridade, ao lado do banco e de uma Unidade
do SUS, um enorme barracão pegava fogo. Nele funcionava uma boate a todo vapor.
O barulho saído dela se fazia ensurdecedor. Por conta, a balburdia formada se
assarapantava com os estouros dos trovões e relâmpagos.
Nessa
grazinada, a juventude local, ali se reunia aos bandos e se divertia num baile
inusitado que nunca deixava de acontecer nos finais de semana.
Impreterivelmente rolava o estardalhaço até uma ou duas da manhã. Lado outro,
não se consubstanciava o furdunço numa simples coalisão festiva regida por um
bando de cantores amadores e suas partituras de melodias barulhentamente
previsíveis. De forma alguma. Naquele ambiente repletado de franguinhas e
efebos (as idades mais variadas), sempre um conjunto contratado vindo de outras
paragens, alimentava a assuada que se contorcia em meio a danças e gritos
estridentes.
Meio deles, uma majestosa beldade, vestida com um manto de confrarias celestes e sapatos de vento se destacava. A doidivana lembrava uma Barbie ricamente vestida. Seus passos se faziam imprevisíveis —, ora rápidos como o apagar e o acender de fortes holofotes —, ora lentos como o desabrochar de uma flor mimosa sozinha e triste esquecida num jardim ao acaso de uma noite desfigurada de regougantes riscos de relâmpagos numa amplidão açulada. Os convivas, obviamente rapazes e moças entre os quinze e vinte anos, alheios ao temporal, não davam a mínima para o desabar do aguaceiro.
Se
debruçavam atônitos e perplexos, tentando acompanhar a fogosa mirita, meio do
tablado, que remoinhava incansável ao som grotesco de um conjunto que lembrava
uma banda de malucos cariocas (tipo a tresloucada e famigerada “Ethiopia” dos anos oitenta.) O
velho Noa, gerente da “boate-barracão” e dono do espaço, a toda hora espiava
para seu medidor de tempo escondido no bolso da calça. Como a turma em
polvorosa, a criatura girava em círculos feito barata espirrando inseticida
inalada em recipiente à base de aerossol. Ele se atinha a controlar o horário
do encerramento, ou a polícia local pintava sem aviso e debandava a turba em
direção a seus genitores. Na verdade, o
velho Noa também não perdia tempo.
Se
entrelaçava entre os adolescentes. Desengonçado como um pião endoidecido se
deixava ser levado pela farra reinante. Destravado da idade que lhe arcava as
costas, fora de si, voluteava tentando sincronizar o tempo de sua decrepitude
com os passos erráticos da admirável dançarina. Por seu turno, a garina, como
uma musa saída das telas coloridas de um programa de auditório, irmanada aos
seus esgares e trejeitos leves e soltos, mercadejava buscando capturar e não só
se chacoalhar, tumultuar a latomia. E conseguia. Por conta, a guria se movia
aos urros objetivando aquém —, ou seja —, a todo custo, seu intento se resumia
em fazer explodir, de dentro de sua alma em festa, a essência daquela
coreografia que se destacava e crescia de forma arguciosa e imaterial.
Em outro
ponto, não muito longe dali, ou mais precisamente na rua do Cemitério
Municipal, quase às portas da Igreja Matriz de Nossa Senhora Aparecida, um
casal se encontrou por mero acaso na descida dos degraus da Padroeira. A moça,
avivada na esteira dos vinte, não outra, senão Marlucia, a sonhadora —, e João
Eduardo, grudado nos cabelos encaracolados dos vinte e cinco, se fizera músico
talentoso e pragmático. O mancebo dava vida e cor aos teclados amarelados de um
órgão do “Tempo do Onça,” durante as celebrações das missas. Marlucia, nas
horas de folga, ajudava o padre Dininho na conservação dos afazeres da
sacristia e, às vezes, se via ativada ajudando os fiéis no interior do templo.
Ela
acreditava piamente no acaso. Se agarrava de unhas e dentes nas coincidências
que teciam os fios invisíveis do desconhecido. João Eduardo em oposto, gozava
descaradamente da ideia de que o universo pudesse ser tão caprichosamente
obstinado e funambulesco. Pelo menos no sentido de mudar a sua vidinha de merda
para algo mais propício a sua biografia inócua e mediana. Contudo, naquele
esbarro meio que improvisado, ajudado pelo “torrenciamento” da chuva, algo
aconteceu entre ele e a Marlucia. A
música barulhenta vinda do “barracão-boate,” entrementes, num inusitado e
proposital, atingiu em cheio os seus ouvidos.
Da fervura,
um incidente abrandado se soergueu decisivo e incontestável. Na verdade tal
evento, mudou todo o quadro sistêmico da situação. Marlucia, sem entender como,
pisou no pé de João Eduardo. Por conta desse tropeço, se dobrou sobre si mesma
perdendo o equilíbrio. João Eduardo, astuto e ligeiro, como um gato,
prontamente a segurou em seus braços e o fez com carinho e afeto evitando que a
preciosa caísse e se esbagaçasse degraus à solo, consequentemente, se ralasse
toda no chão liso e molhado. Seus olhares, por questões de segundos, se
cruzaram. Uma espécie de voz vinda das entranhas do coração de cada um
sussurrou em seus ouvidos: “Vocês dois são partes de uma graça engendrada por
Deus.
Acabaram de
ser abençoados por fios invisíveis.” Dessa forma meio que anormal e pitoresca,
entre embondos e risadas, tropeços e adversidades, Marlucia e João Eduardo se
deram em afetuoso abraço. Do nada, carnavalearam ao som da chuva carraspana e
impiedosa e dos trovões e relâmpagos intermináveis. Não sabiam se aquela efeméride vinha oriunda
de um mero acaso ou a diligência venturosa e sábia do Pai Maior os acolitava
como se dois seres sozinhos e abandonados à sorte participassem de uma euforia
subsidiada por uma virilidade sobrenatural viajada de um infinito longínquo e
intransponível.
Nessa altura
do campeonato, pouco ou quase nada importava. O abluvião lavava as suas
dúvidas. Sem mais delongas, se grudaram, se pegaram, se uniram e se entregaram
à dança da bátega. Manhã seguinte, toda a praça e adjacências acordou cinzenta
e vazia. Melhor dito: as ruas e becos cheios de águas barrentas e empossadas,
se acomodaram pela longa extensão causada pela esquipática borrasca. O
esporádico tufão havia partido, viajado, deixando apenas pegadas invisíveis na
terra de pele encharcada. Marlucia e João Eduardo, dia seguinte, voltaram a se
ver. Meses depois, se juntaram consentidos no mesmo teto, dividindo pratos e
talheres, escovas de dentes, lençóis e cobertores.
De
contrapeso, o perfume ebriático do amor jubilado advindo daquela única noite de
torvelinho se fez coeso e perdurou pelo resto de suas existências. Um ano
depois se solidificou no “para sempre de suas carícias,” como cálidas, doces e
imorredouras memórias. Nesse tom, os pombinhos aprenderam que a vida é uma
espécie de crônica inédita escrita pelas mãos invisíveis de uma engenhosidade
conhecida como uma dádiva ocasional, um “afago-meigo” voltado para as boas
coisas do mundo. Não somente isso. Às vezes, os passos incertos podem levar
dois seres distanciados e apartados para um paraíso onde sequer pensavam
existisse em seus humildes e sofridos dias passados um aprazível rincão de
esperanças e capitosa felicidade.
Título e
Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 19-3-2024
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