terça-feira, 19 de março de 2024

[Aparecido rasga o verbo] O amor às vezes dança na contramão do inverossímil

Aparecido Raimundo de Souza

ACONTECEU num final de noite de domingo, por volta das dezenove horas. Trovoadas e ventos de feições robustas deram sinais de que viriam com força total. De repente, uma chuva forte se formou para as bandas das montanhas que circundavam a pequena cidadela. Um temporal carregado de escuro veio com tudo e, num primeiro momento, deu a impressão, pela força empregada, de querer devastar o humilde vilarejo de pouco mais de quinhentas famílias. O aguaceiro intermitente perdurou furioso, como se o céu grandioso parecesse chorar seus horrores absolvidos em funestas camadas de agonias e incertezas.

Na pequena e bucólica Flor Mimosa, os moradores se recolheram às suas casas como puderam. Algumas cabeças se ajeitaram sob seus guarda-chuvas; outros buscaram abrigo às carreiras nas dependências do terminal rodoviário e na estação de trem. Igual leva se asilou debaixo dos beirais e marquises do único mercado. Os sem mulheres e filhos preferiram embicar para os copos das cervejas geladas da birosca do seu Antunes. Na Praça da Caridade, ao lado do banco e de uma Unidade do SUS, um enorme barracão pegava fogo. Nele funcionava uma boate a todo vapor. O barulho saído dela se fazia ensurdecedor. Por conta, a balburdia formada se assarapantava com os estouros dos trovões e relâmpagos.

Nessa grazinada, a juventude local, ali se reunia aos bandos e se divertia num baile inusitado que nunca deixava de acontecer nos finais de semana. Impreterivelmente rolava o estardalhaço até uma ou duas da manhã. Lado outro, não se consubstanciava o furdunço numa simples coalisão festiva regida por um bando de cantores amadores e suas partituras de melodias barulhentamente previsíveis. De forma alguma. Naquele ambiente repletado de franguinhas e efebos (as idades mais variadas), sempre um conjunto contratado vindo de outras paragens, alimentava a assuada que se contorcia em meio a danças e gritos estridentes.

Meio deles, uma majestosa beldade, vestida com um manto de confrarias celestes e sapatos de vento se destacava. A doidivana lembrava uma Barbie ricamente vestida. Seus passos se faziam imprevisíveis —, ora rápidos como o apagar e o acender de fortes holofotes —, ora lentos como o desabrochar de uma flor mimosa sozinha e triste esquecida num jardim ao acaso de uma noite desfigurada de regougantes riscos de relâmpagos numa amplidão açulada. Os convivas, obviamente rapazes e moças entre os quinze e vinte anos, alheios ao temporal, não davam a mínima para o desabar do aguaceiro.

Se debruçavam atônitos e perplexos, tentando acompanhar a fogosa mirita, meio do tablado, que remoinhava incansável ao som grotesco de um conjunto que lembrava uma banda de malucos cariocas (tipo a tresloucada e   famigerada “Ethiopia” dos anos oitenta.) O velho Noa, gerente da “boate-barracão” e dono do espaço, a toda hora espiava para seu medidor de tempo escondido no bolso da calça. Como a turma em polvorosa, a criatura girava em círculos feito barata espirrando inseticida inalada em recipiente à base de aerossol. Ele se atinha a controlar o horário do encerramento, ou a polícia local pintava sem aviso e debandava a turba em direção a seus genitores.  Na verdade, o velho Noa também não perdia tempo.

Se entrelaçava entre os adolescentes. Desengonçado como um pião endoidecido se deixava ser levado pela farra reinante. Destravado da idade que lhe arcava as costas, fora de si, voluteava tentando sincronizar o tempo de sua decrepitude com os passos erráticos da admirável dançarina. Por seu turno, a garina, como uma musa saída das telas coloridas de um programa de auditório, irmanada aos seus esgares e trejeitos leves e soltos, mercadejava buscando capturar e não só se chacoalhar, tumultuar a latomia. E conseguia. Por conta, a guria se movia aos urros objetivando aquém —, ou seja —, a todo custo, seu intento se resumia em fazer explodir, de dentro de sua alma em festa, a essência daquela coreografia que se destacava e crescia de forma arguciosa e imaterial.

Em outro ponto, não muito longe dali, ou mais precisamente na rua do Cemitério Municipal, quase às portas da Igreja Matriz de Nossa Senhora Aparecida, um casal se encontrou por mero acaso na descida dos degraus da Padroeira. A moça, avivada na esteira dos vinte, não outra, senão Marlucia, a sonhadora —, e João Eduardo, grudado nos cabelos encaracolados dos vinte e cinco, se fizera músico talentoso e pragmático. O mancebo dava vida e cor aos teclados amarelados de um órgão do “Tempo do Onça,” durante as celebrações das missas. Marlucia, nas horas de folga, ajudava o padre Dininho na conservação dos afazeres da sacristia e, às vezes, se via ativada ajudando os fiéis no interior do templo.

Ela acreditava piamente no acaso. Se agarrava de unhas e dentes nas coincidências que teciam os fios invisíveis do desconhecido. João Eduardo em oposto, gozava descaradamente da ideia de que o universo pudesse ser tão caprichosamente obstinado e funambulesco. Pelo menos no sentido de mudar a sua vidinha de merda para algo mais propício a sua biografia inócua e mediana. Contudo, naquele esbarro meio que improvisado, ajudado pelo “torrenciamento” da chuva, algo aconteceu entre ele e a Marlucia.  A música barulhenta vinda do “barracão-boate,” entrementes, num inusitado e proposital, atingiu em cheio os seus ouvidos.

Da fervura, um incidente abrandado se soergueu decisivo e incontestável. Na verdade tal evento, mudou todo o quadro sistêmico da situação. Marlucia, sem entender como, pisou no pé de João Eduardo. Por conta desse tropeço, se dobrou sobre si mesma perdendo o equilíbrio. João Eduardo, astuto e ligeiro, como um gato, prontamente a segurou em seus braços e o fez com carinho e afeto evitando que a preciosa caísse e se esbagaçasse degraus à solo, consequentemente, se ralasse toda no chão liso e molhado. Seus olhares, por questões de segundos, se cruzaram. Uma espécie de voz vinda das entranhas do coração de cada um sussurrou em seus ouvidos: “Vocês dois são partes de uma graça engendrada por Deus.

Acabaram de ser abençoados por fios invisíveis.” Dessa forma meio que anormal e pitoresca, entre embondos e risadas, tropeços e adversidades, Marlucia e João Eduardo se deram em afetuoso abraço. Do nada, carnavalearam ao som da chuva carraspana e impiedosa e dos trovões e relâmpagos intermináveis.  Não sabiam se aquela efeméride vinha oriunda de um mero acaso ou a diligência venturosa e sábia do Pai Maior os acolitava como se dois seres sozinhos e abandonados à sorte participassem de uma euforia subsidiada por uma virilidade sobrenatural viajada de um infinito longínquo e intransponível.

Nessa altura do campeonato, pouco ou quase nada importava. O abluvião lavava as suas dúvidas. Sem mais delongas, se grudaram, se pegaram, se uniram e se entregaram à dança da bátega. Manhã seguinte, toda a praça e adjacências acordou cinzenta e vazia. Melhor dito: as ruas e becos cheios de águas barrentas e empossadas, se acomodaram pela longa extensão causada pela esquipática borrasca. O esporádico tufão havia partido, viajado, deixando apenas pegadas invisíveis na terra de pele encharcada. Marlucia e João Eduardo, dia seguinte, voltaram a se ver. Meses depois, se juntaram consentidos no mesmo teto, dividindo pratos e talheres, escovas de dentes, lençóis e cobertores.

De contrapeso, o perfume ebriático do amor jubilado advindo daquela única noite de torvelinho se fez coeso e perdurou pelo resto de suas existências. Um ano depois se solidificou no “para sempre de suas carícias,” como cálidas, doces e imorredouras memórias. Nesse tom, os pombinhos aprenderam que a vida é uma espécie de crônica inédita escrita pelas mãos invisíveis de uma engenhosidade conhecida como uma dádiva ocasional, um “afago-meigo” voltado para as boas coisas do mundo. Não somente isso. Às vezes, os passos incertos podem levar dois seres distanciados e apartados para um paraíso onde sequer pensavam existisse em seus humildes e sofridos dias passados um aprazível rincão de esperanças e capitosa felicidade.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 19-3-2024


Anteriores: 
Escarlate sob o cinza 
A verdadeira história da pamonha com cãibra 
Papo Reto 
Entre a Solidão e a Esperança

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-