sexta-feira, 8 de março de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Papo Reto

Aparecido Raimundo de Souza

CORRIA UMA TARDE
quente e ensolarada, dessas que fazem o asfalto derreterem, os miolos do cérebro entrarem em erupção e os ânimos, por mais calmos e tranquilos se inflamarem. Nas esquinas das calçadas da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com a Raimundo Correia, se encontraram duas criaturas amigas de velhos carnavais. Fazia bom tempo que não se esbarravam. Luan e Andrômeda. Ambos compartilhavam uma amizade sincera, dessas fortes e robustas que resistem ao tempo e às tempestades.

Luan, alto, perfeito em cada traço, com seu jeito informal, os cabelos ralos e brancos, ao reconhecer a velha companheira que não via fazia anos, olhou para Andrômeda e mandou bala na primeira coisa desconexa que lhe acudiu à cabeça:
— Sabe, minha fofa, olhando para você, aqui na minha beira, percebo que a vida é como um jogo de xadrez. Às vezes, precisamos mover nossas peças com estratégia, em outras, é melhor jogarmos com o coração.Andrômeda, com seu sorriso de moça sofrida, concordou:
— Você está certo, Luan. Mas o problema é que muitas pessoas preferem o jogo de pôquer, onde escondem as suas cartas e blefam o tempo todo. Eu prefiro o papo reto, a honestidade sem máscaras e sem rodeios.

Luan riu descontraidamente ao tempo em que apontou para o letreiro de um barzinho próximo, do outro lado da calçada. Na época em que este texto foi escrito, funcionava no local o “Café Papo Cabeça.” Hoje, mesma rua e número, está a todo vapor o “Assis Steak Bar:”
— Olha ali, Andrômeda. “Café Papo Cabeça.” Acho que é um sinal para reatarmos as nossas velhas conversas.
Andrômeda assentiu homologando a ideia posta pelo vistoso cavalheiro:
— Estou de pleno acordo.

Sem deixarem de conversar, atravessaram a avenida movimentada e entraram na pequena cafeteria, onde o aroma da bebida recém-preparada envolvia o ambiente. Sentaram em uma mesa de madeira desgastada, bem lá no fundo da peça e Andrômeda, ao ver se aproximar a garçonete, pediu um expresso. Luan optou por um café com leite e pão com manteiga. Fosse a hora que fosse, seu habitual não deixava de se fazer presente:
— Então, minha princesa — disse Luan, colocando açúcar e mexendo o líquido com a colher. Vamos falar sobre o que realmente importa. Como você está?
Andrômeda olhou nos olhos do amigo e suspirou:
— Luan, às vezes, a vida nos obriga a usar máscaras. Mas aqui e agora, neste café, gostaria de tirar o invólucro que uso, se me permite. Estou cansada de fingir que está tudo bem quando, na verdade, meu coração aqui dentro do esqueleto se faz em pedaços.

Luan apoiou a mão sobre a de sua amiga:
— Andrômeda, a sinceridade é como uma dança. Às vezes, pisamos nos pés um do outro, todavia é a única maneira de realmente nos conhecermos.
No conforto aconchegante daquela casa de Café de nome meio engraçado, “Papo Cabeça,” os dois amigos compartilharam as suas dores, dividiram risadas e expuseram alguns sonhos que por motivos os mais diversos, não se realizaram. Não havia espaço para meias verdades ou disfarces. Apenas palavras sinceras, como notas musicais em uma melodia única.
— Posso me abrir, Andrômeda?
— Fique à vontade, Luan. Bota para fora tudo o que tem vontade que lhe escuto. Sou toda ouvidos e atenção.

— Estou me sentindo sozinho. Sabe como? Sem mulher, os filhos criados, os netos distantes, a mamãe falecida, os irmãos, embora próximos não ligam..., aliás, nem sabem se eu existo. Se estou vivo ou morto. Venho me sentindo um estorvo. Tipo jogado às traças...
Andrômeda também se deixou levar pelo impulso do momento, a alma aflita e conturbada:
— Como você sabe, me separei do Edgar. Não tive filhos. Minha mãe está doente e entrevada numa cama. Pago uma cuidadora, fico pouco tempo em casa, em face do trabalho. Quase não tenho tempo. Também lhe asseguro que me sinto meio que perdida. Abandonada à sorte. Sem ninguém para conversar. As noites se fazem longas e pesadas.

Luan nada disse enquanto a amiga seguia com seu rosário de lamentações:
— Às vezes penso em pôr fim a vida. Pular na frente de um carro, ou me jogar do alto de uma ponte...
Luan se mostrou cordial e benevolente. Indagou, como quem não quisesse nada:
— Não tem namorado?
— Não.
— Amiga?
— Ninguém. Só a mãe. Vez em quando troco algumas palavras com a dona Bethe.
— Quem é dona Bethe?
— A cuidadora de mamãe.

— Ah...
Foi a vez de Andrômeda assuntar:
— E você, Luan, não tem um cobertor de orelha?
— Não.
— Faço referência a um quebra galho para se aliviar das tensões cotidianas.
— Ninguém, minha linda.
— Daqui a pouco, se não me engano, você fará setenta.
— Verdade. Aliás, setenta e um. Em razão disso, não arranjo uma pessoa para enroscar meus dissabores. Por falar em idade, você já chegou aos trinta?
— Trinta e cinco Luan.

— Nem parece. Sua estrutura não envelhece. Sua fisionomia, seu corpo, conservam a beleza radiante dos vinte, a formosura imorredoura dos tempos da escola, quando lhe conheci. Lembra?
— Sim, Luan. Entretanto, o resto, a beleza, a formosura, é pura bondade sua. Estou um caco...
— Andrômeda, você está morando onde?
— Em Bonsucesso, perto da Estação. Mesma casa... mesma rua...

Luan, arriscou uma deixa. Se desse certo... afinal de contas, ou a beldade diria um sim sonoro ou, no pior dos mundos, lascaria um não avassalador:
— Se eu lhe fizesse um convite, aceitaria?

Andrômeda se mensurou num sorriso solidário:
—Tente.
— Vamos até minha casa? Nunca me mudei daquele apartamento. Você, aliás o conhece bem. O que me diz?
Andrômeda moveu a cabeça positivamente:
— Se não for lhe incomodar... convite aceito.
Quando se levantaram e saíram, o sol já se punha no horizonte. Andrômeda olhou para Luan e disse, a voz pausada, meio carente:
— Obrigada por ser meu amigo de verdade.
Luan sorriu e acrescentou:
— Sempre, Andrômeda. Que a nossa afinidade e confiança perdurem por muitos e muitos anos.

Deixaram o local e foram caminhando. O rapaz morava na Rua Duvivier, ou mais precisamente perto do “Beco das Garrafas.” Sem pressa seguiram lado a lado, na dança da vida, com os passos firmes e as palavras sinceras ditas sem retoques. Ao chegarem no apartamento de Luan, ele lhe mostrou todos os cômodos. Fez um café novo, tirou um bolo da geladeira, abriu um saco de biscoitos e serviu à mesa. Depois de tudo, a conduziu até seu quarto:
— Sabe no que estou pensando, Andrômeda?
A moça, em resposta, se fantasiou brejeira num sentimento que tudo indicava, terminaria numa súbita explosão de labaredas incontroláveis:
— Deixa ver se adivinho as suas reais intenções: primeiro você me tirará as roupas. Por segundo, me dará um banho gostoso e demorado. Depois, por terceiro, me jogará na sua cama e... acertei?
— Na mosca...

Assim foi. Andrômeda se deixou ser dominada pelo amigo de tantos janeiros. Depois do chuveiro, ele renovou o café. Em seguida, sem pressa, tardão da noite, com carinho e afeto, Luan a conduziu para seus aposentos. Deitados lado a lado, se beijaram, trocaram carícias e eternas juras de amor. Culminaram entrelaçados num amplexo entre gritos e palavras ininteligíveis baseados na velha cama de solteiro. A peça de dormir não ia além de um colchão apertado, a proximidade forçada de dois corpos envoltos em brasas incandescentes. Na verdade, um casal enlouquecido que fazia tempos não sentia o gostoso do amor e da posse carnal. O que importava, para eles, o que disseram quando resolveram tirar as próprias máscaras. Naquela magia do regresso aos tempos idos, ressuscitaram a verdadeira essência que lhes corria em meio a dois seres solitários em busca de um mesmo objetivo. O AMOR.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 8-3-2024

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