terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Não era a dança da alma perdida. E jamais seria...

Aparecido Raimundo de Souza

VIVIAM BARCELAR DANÇAVA. Bailava suave e de forma cadenciada, harmoniosa e coerente, como se não houvesse amanhã. E se por algum descuido existisse, ela não se importava. Não estava nem aí. Ela só queria dançar. Seus movimentos eram fluidos e graciosos, intensos e elegantes. Tudo numa cadenciação ímpar seguia em ritmo alucinante e indescritível. Ela girava, ora, saltava, ora rodopiava, ora parecia sair do chão, sem se incomodar com o mundo ao seu redor. Ela dançava não só para alimentar a si mesma. Desvairava para sua alma se ver engrandecida. Se açoitava para esconder o rosto macerado pela intensidade da dor que a deixava sem rumo, sem prumo, sem norte.

Viviam Barcelar, havia pouco tempo, perdera tudo o que amava. Seu marido Gabriel, arranjara uma amante. Seu filho Lucas se debandou para a casa do avô; seu apartamento na Barra da Tijuca ficou grande demais para abrigar somente a sua fragilidade; seu José e dona Rosa (seus sogros); se mudaram de mala e cuia para o interior. Ela tinha fugido recente de uma guerra que lhe enfraqueceu os sonhos que almejava. Um conflito medonho que não se fazia esperado, aflorou. Uma conflagração hostil lhe tirou tudo o que tinha conquistado e se fazia real como as linhas desalinhadas das palmas de suas mãos.

Viviam Barcelar perdeu tudo e mais um pouco. Ela tinha chegado a um lugar estranho, estancado num ponto distante do seu estado normal, onde não conhecia ninguém, tampouco vivalma falava a sua língua e o pior de tudo: onde não tinha sequer um pingo de esperança. A bela e ousada bailarina, na alvura dos vinte e nove, só tinha a dança. Sua válvula de escape. A tábua da salvação. O desvão para fugir das desgraças que lhe atormentavam. A dança que aprendeu com sua mãe; que herdou de sua avó; que fazia parte de sua cultura; de sua identidade. Os movimentos sequenciais que se transformaram na sua melhor forma de expressar, de sentir, de viver, de se acreditar respirando com o coração envolto em batidas descompassadas.

A dança que era a sua utopia, o seu agora, o seu amanhã, enfim, a única alegria, o derradeiro prazer, tudo se fez num buraco imenso. Em verdade, a sua trilha para alcançar a liberdade, para se ver livre de um perigo iminente veio à óbito: a solidão brutal no lugar dela, se materializou. Com isso, a dança da sua alma estraçalhada, alquebrada, quase às raias da neurastenia não lhe permitia parar. Por conta, a criatura carecia de seguir em frente. “Droga! Só dançando não sucumbiria.” Para não se ver sem saída, perdida, mais esmagada que arroz de terceira, a dança voltou à cena. Se constituiu, sem sombra de dúvidas, na sua única maneira de voltar a ser o que antes alegrava o seu mundo, não permitindo chegar aquela situação infame e atarantadamente ensandecida.

Viviam Barcelar dançava, dançava e dançava... voava febril sobre os pés, dançava eletrizante como se não houvesse um agora ou um próximo amanhã. Se mexia freneticamente porque, talvez, se parasse para pensar, para tentar reconstruir o que se fazia (ou lhe parecia impossível), talvez sinalizasse não existir, de fato um novo dia seguinte à sua espera. Porque talvez Viviam Barcelar não quisesse que houvesse. Porque lado outro, só pretendesse se perder tresloucada na dança, na cadenciação da música, ou, no pior dos mundos: se fundir na arte. Talvez ela só quisesse se encontrar nos domínios da dança, na euforia da música, usque no melhor daquilo que sabia fazer com esmero e perfeição. Ela não se cansava.

Seguia firme e dançava. Dançava e seguia adiante. Seguia lisonjeira, como uma alma perdida em busca de reza. Um ser que buscava um sentido; um propósito; um destino; um talvez; um minuto; um segundo que fosse para se sentir feliz e realizada. Viviam Barcelar se transformara numa alma oca que ansiava por tranquilidade e paz, que soluçava pelo amor se renovando, pela felicidade plena. Uma alma simplesmente solitária, que se entregava de peito e coração abertos, à dança, à música, e à arte. Nela, nos benfazejos da dança, seu futuro promissor, se fazia seu tudo.

Viviam Barcelar, por assim, dançava. Dançava sem parar. Não se cansava. Acabava uma música, entrava outra e mais outra e mais outra —, tudo numa sequência interminável. Ela dançava como uma vida perdida. Uma coisa sem valor, um ser que não merecesse mais nada, a não ser deixar de existir. Não, não, por Deus, deixar de existir, jamais. Jamais! Viviam Barcelar sofria. Estava no fim. Contudo, acreditava piamente, sentia que através da dança, envolta corpo, alma e espírito, tudo sem tirar nem pôr condensado naquele ritmo entontecido, se achasse se descobrisse exatamente no lugar do caminho, onde sem saber por qual motivo, se perdeu e se distanciou... —, ou via outra, se divorciou de si mesma.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 20-2-2024

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