segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Os grandes santos casamenteiros e afrodisíacos

Gilberto Freyre

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Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morai: como os escrúpulos católicos de ortodoxia; e ao seu serviço vamos encontrar o cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou característicos quase pagãos de culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio, São João, São Gonçalo do Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom Sucesso, do Bom Parto. Nem os santos guerreiros como São Jorge, nem os protetores das populações contra a peste como São Sebastião ou contra a fome como Santo Onofre - santos cuja popularidade corresponde a experiências dolorosamente portuguesas - elevaram-se nunca à importância ou ao prestígio dos outros patronos do amor humano e da fecundidade agrícola.


Importância e prestígio que se comunicaram ao Brasil, onde os problemas do povoamento, tão angustiosos em Portugal, prolongaram-se através das dificuldades da colonização com tão fracos recursos de gente. Uma das primeiras festas meio populares, meio de igreja, de que nos falam as crônicas coloniais do Brasil é a de São João já com as fogueiras e as danças. Pois as funções desse popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se ligam até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência:

Dai-me noivo, São João, dai-me noivo,
dai-me noivo, que me quero casar.

As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de São João, festejado a foguetes, busca-pés e vivas, visam no Brasil, como em Portugal, a união dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e não se encontrou ainda.

No Brasil faz-se a sorte da clara de ovo dentro do copo de água; a da espiga de milho que se deixa debaixo do travesseiro, para ver em sonho quem vem comê-la; a da faca que de noite se enterra até o cabo na bananeira para de manhã cedo decifrar-se sofregamente a mancha ou a nódoa na lâmina; a da bacia de água, a das agulhas, a do bochecho.

Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antônio. Por exemplo: as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos associados às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil. É a imagem desse santo que frequentemente se pendura de cabeça para baixo dentro da cacimba ou do poço para que atenda às promessas o mais breve possível. Os mais impacientes colocam-na dentro de urinóis velhos.

São Gonçalo do Amarante presta-se a sem-cerimônias ainda maiores. Ao seu culto é que se acham ligadas as práticas mais livres e sensuais. Às vezes até safadezas e porcarias. Atribuem-lhe a especialidade de arrumar marido ou amante para as velhas como a São Pedro a de casar as viúvas. Mas quase todos os amorosos recorrem a São Gonçalo:

Casai-me, casai-me,
São Gonçalinho,
Que hei de rezar-vos,
Amigo santinho.

Exceção só das moças:

São Gonçalo do Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Por que não casais as moças?
Que mal vos fizeram elas?

Gente estéril, maninha, impotente, é a São Gonçalo que se agarra nas suas últimas esperanças. Antigamente no dia da sua festa dançava-se dentro das igrejas - costume que de Portugal comunicou-se ao Brasil.

Dançou-se e namorou-se muito nas igrejas coloniais do Brasil. Representaram-se comédias de amor. Em uma de suas pastorais, recomendava em 1726 aos padres de Pernambuco D. frei José Fialho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo de Olinda: "não consintão que se facão comédias, colloquios, representações nem bailes dentro de alguma Egreja, capella, ou seus adros".

Isto em princípios do século XVIII. De modo que talvez não exagere Le Gentil de la Barbinais ao descrever-nos as festas do Natal de 1717 que teria presenciado no convento de freiras de Santa Clara na Bahia. Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor.

(…)

Texto: Gilberto Freyre, in “Casa-grande & senzala”, Global Editora, São Paulo 2006, 12ª reimpressão, 2020, páginas 325, 326, 327 e 328
Digitação: JP, 19-2-2024

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