quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

“Há tanto que criticar na política dos colonizadores portugueses no Brasil que para acusá-los de erros tremendos não é necessário recorrer à imaginação”

Cena de Carnaval. Jean-Baptiste Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, 1834

Gilberto Freyre

(…)

Os colégios dos jesuítas nos primeiros dois séculos, depois os seminários e colégios de padre, foram os grandes focos de irradiação de cultura no Brasil colonial. Aqueles estenderam tentáculos até os matos e sertões. Descobriram os primeiros missionários que andavam nus e à toa pelos matos meninos quase brancos, descendentes de normandos e portugueses. E procuraram recolher aos seus colégios esses joões-felpudos.

Foi uma heterogênea população infantil a que se reuniu nos colégios dos padres, nos séculos XVI e XVII: filhos de caboclos arrancados aos pais; filhos de normandos encontrados nos matos; filhos de portugueses; mamelucos; meninos órfãos vindos de Lisboa. Meninos louros, sardentos, pardos, morenos, cor de canela.

Só negros e moleques parecem ter sido barrados das primeiras escolas jesuíticas. Negros e moleques retintos. Porque a favor dos pardos levantou-se no século XVII a voz del-Rei em um documento que honra a cultura portuguesa e deslustra o cristianismo dos jesuítas; é pena que todo este tempo tenha se conservado inédito papel de tamanha significação. "Honrado Marquez das Minas Amigo", escreveu em 1686 o rei de Portugal ao seu representante no Brasil: "Honrado Marquez das Minas Amigo. Eu Elrey vos envio muito saudar como aquelle que prezo. Por parte dos mossos pardos dessa cidade, se me propoz aqui que estando de posse ha muitos annos de estudarem nas Escolas publicas do Collegio dos Religiozos da Companhia, novamente os excluirão e não querião admittir, sendo que nas escolas de Évora e Coimbra erão admittidos, sem que a cor de pardo lhes servisse de impedimento. Pedindo-me mandasse que os taes religiozos os admittisem nas suas escolas desse Estado, como o são nas outras do Reyno. E pareceo-me ordenar-vos (como por esta o faço) que houvindo aos padres da Companhia vos informeis se são obrigados a ensinar nas escolas desse Estado e constando-vos que assim he os obrigareis a que não excluão a estes mossos geralmente só pela qualidade de pardos, por que as escolas de sciencias devem ser igualmente co- muns a todo o gênero de pessoas sem excepção alguma. Escripta em Lisboa a 20 de Novembro de 1686. Rev".

"Por que as escolas de sciencias devem ser igualmente comuns a todo o gênero de pessoas sem excepção alguma" - são palavras que quase não se acredita virem até nós do remoto século XVII. Nelas devem atentar os que acusam os portugueses de terem sempre trata[1]do o Brasil de resto - terra de pés-de-cabra e de curibocas; negrada; indiada. A atitude quase demagógica de Luís Edmundo, por exemplo, no seu O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis.

Salienta aí o cintilante beletrista que contra a freqüência dos casamentos legítimos no Brasil colonial - instituição por muitas vezes substituída pelo concubinato e pelas ligações efêmeras, como ainda em meados do século XIX notou Burton em Minas Gerais - teria atuado poderosamente "o preconceito de muitos portugueses contra os naturais do país, preconceito ensinado pela lei portuguesa desse tempo, uma vez que infames eram por ela considerados os que se ligassem à chamada raça desprezível dos caboclos."

Não nos parece que a preconceitos rigorosamente de portugueses contra brasileiros deva atribuir-se a freqüência do concubinato; os mazombos que aqui se amasiaram com caboclas e pretas tiveram decerto as mesmas razões para fugirem do casamento que mais tarde brasileiros brancos - tantos deles amigados com negras minas e mulatas, em vez de casados.

Preconceitos não de reinóis contra coloniais; nem mesmo de brancos contra mulheres de cor. Mas de senhores contra escravas e filhas de escravas. Quanto à lei portuguesa ter considerado infames os que se ligassem a caboclas e negras - quando é que as leis de proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?

Também as leis portuguesas proibiam os indivíduos com sangue de mouro ou negro de ser admitidos ao sacerdócio; e Pandiá Calógeras afirma que assim se praticou; que o sacerdócio foi no Brasil uma espécie de aristocracia branca, exclusivista e fechada. Talvez o tenha sido até o século XVIII. Observadores estrangeiros dos mais merecedores de fé - Koster e Walsh, por exemplo - deixam bem clara a existência - no século XIX, pelo menos - de padres com sangue negro; e alguns até, negros retintos. Um que Walsh viu celebrando aparatosa missa era tão preto que a cor escura do rosto ("jetblack visage") contrastava fortemente com a alvura das rendas e dos paramentos eclesiásticos. Notou entretanto o inglês que seus gestos revelavam mais decoro que os dos sacerdotes brancos.

Lei por lei, contra a que declarou "infames os portugueses que se ligassem a caboclas" deve-se opor a do marquês de Pombal, em sentido justamente contrário: animando o casamento deles com as índias.

Há tanto que criticar na política dos colonizadores portugueses no Brasil que para acusá-los de erros tremendos não é necessário recorrer à imaginação; e fazer do tipo mais complacente e plástico do europeu um exclusivista feroz, cheio de preconceitos de raça que nunca teve no mesmo grau elevado dos outros.

Raros os governadores portugueses no Brasil que tiveram, já não diremos contra os índios, mas contra os negros, a atitude áspera e intolerante do 8º vice-rei, marquês de Lavradio; o qual em portaria de 6 de agosto de 1771 rebaixou a um índio do posto de capitão-mor por ter casado com uma negra e assim "haver manchado o seu sangue e se mostrado indigno do cargo".

Aliás, já depois de independente o Brasil houve padres que se recusaram a casar branco com negra. Padres e juizes. Um dos juizes, o pernambucano Castelo Branco. Mas, atitudes, todas essas, esporádicas; fora da tendência genuinamente portuguesa e brasileira, que foi sempre no sentido de favorecer o mais possível a ascensão social do negro. Estamos, porém, a sair dos limites deste ensaio; e a invadir os de trabalho próximo.

Os pretos e pardos no Brasil não foram apenas companheiros dos meninos brancos nas aulas das casas-grandes e até nos colégios; houve também meninos brancos que aprenderam a ler com professores negros. A ler e a escrever e também à contar pelo sistema de tabuada cantada.

Artur Orlando refere que seu professor de primeiras letras, em Pernambuco, foi um preto chamado Calisto. Calisto andava de cartola cinzenta, casaca preta e calças brancas." Trajo de gente lorde. De doutores e fidalgos coloniais com medo de hemorróidas ou já sofrendo da maldita doença que desde o século XVI parece ter perseguido os portugueses ricos ou letrados e seus descendentes no Brasil.

O que não é para admirar andando os colonos dos séculos XVI, XVII e XVIII de roupas tão impróprias para o clima; veludo, seda, damasco; muitos deles só saindo em palanquins também de seda, de veludo ou de damasco por dentro. Uns verdadeiros fornos ambulantes, os palanquins de luxo: cobertos de pesados tapetes azuis, verdes e encarnados ou de grossas cortinas.

Nas redes e palanquins deixavam-se os senhores carregar pelos negros dias inteiros; uns viajando de um engenho a outro; outros passeando pelas ruas das cidades, onde ao se avistarem dois conhecidos, cada um na sua rede, era costume pararem para conversar, mas sempre deitados ou sentados nas almofadas pegando fogo.

(…)

Texto: Gilberto Freyre, in “Casa-grande & senzala”, Global Editora, São Paulo 2006, 12ª reimpressão, 2020, páginas 501, 502 e 503 
Digitação: JP, 21-2-2024

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