Cena de Carnaval. Jean-Baptiste Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, 1834
Gilberto Freyre
(…)
Os colégios dos jesuítas nos
primeiros dois séculos, depois os seminários e colégios de padre, foram os
grandes focos de irradiação de cultura no Brasil colonial. Aqueles estenderam
tentáculos até os matos e sertões. Descobriram os primeiros missionários que
andavam nus e à toa pelos matos meninos quase brancos, descendentes de
normandos e portugueses. E procuraram recolher aos seus colégios esses
joões-felpudos.
Foi uma heterogênea população
infantil a que se reuniu nos colégios dos padres, nos séculos XVI e XVII:
filhos de caboclos arrancados aos pais; filhos de normandos encontrados nos
matos; filhos de portugueses; mamelucos; meninos órfãos vindos de Lisboa. Meninos
louros, sardentos, pardos, morenos, cor de canela.
Só negros e moleques parecem
ter sido barrados das primeiras escolas jesuíticas. Negros e moleques retintos.
Porque a favor dos pardos levantou-se no século XVII a voz del-Rei em um
documento que honra a cultura portuguesa e deslustra o cristianismo dos jesuítas;
é pena que todo este tempo tenha se conservado inédito papel de tamanha
significação. "Honrado Marquez das Minas Amigo", escreveu em 1686 o
rei de Portugal ao seu representante no Brasil: "Honrado Marquez das Minas
Amigo. Eu Elrey vos envio muito saudar como aquelle que prezo. Por parte dos
mossos pardos dessa cidade, se me propoz aqui que estando de posse ha muitos
annos de estudarem nas Escolas publicas do Collegio dos Religiozos da
Companhia, novamente os excluirão e não querião admittir, sendo que nas escolas
de Évora e Coimbra erão admittidos, sem que a cor de pardo lhes servisse de
impedimento. Pedindo-me mandasse que os taes religiozos os admittisem nas suas
escolas desse Estado, como o são nas outras do Reyno. E pareceo-me ordenar-vos
(como por esta o faço) que houvindo aos padres da Companhia vos informeis se
são obrigados a ensinar nas escolas desse Estado e constando-vos que assim he
os obrigareis a que não excluão a estes mossos geralmente só pela qualidade de
pardos, por que as escolas de sciencias devem ser igualmente co- muns a todo o
gênero de pessoas sem excepção alguma. Escripta em Lisboa a 20 de Novembro de
1686. Rev".
"Por que as escolas de sciencias devem ser igualmente comuns a todo o gênero de pessoas sem excepção alguma" - são palavras que quase não se acredita virem até nós do remoto século XVII. Nelas devem atentar os que acusam os portugueses de terem sempre trata[1]do o Brasil de resto - terra de pés-de-cabra e de curibocas; negrada; indiada. A atitude quase demagógica de Luís Edmundo, por exemplo, no seu O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis.
Salienta aí o cintilante
beletrista que contra a freqüência dos casamentos legítimos no Brasil colonial
- instituição por muitas vezes substituída pelo concubinato e pelas ligações
efêmeras, como ainda em meados do século XIX notou Burton em Minas Gerais -
teria atuado poderosamente "o preconceito de muitos portugueses contra os
naturais do país, preconceito ensinado pela lei portuguesa desse tempo, uma vez
que infames eram por ela considerados os que se ligassem à chamada raça
desprezível dos caboclos."
Não nos parece que a
preconceitos rigorosamente de portugueses contra brasileiros deva atribuir-se a
freqüência do concubinato; os mazombos que aqui se amasiaram com caboclas e
pretas tiveram decerto as mesmas razões para fugirem do casamento que mais
tarde brasileiros brancos - tantos deles amigados com negras minas e mulatas,
em vez de casados.
Preconceitos não de reinóis
contra coloniais; nem mesmo de brancos contra mulheres de cor. Mas de senhores
contra escravas e filhas de escravas. Quanto à lei portuguesa ter considerado
infames os que se ligassem a caboclas e negras - quando é que as leis de
proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?
Também as leis portuguesas
proibiam os indivíduos com sangue de mouro ou negro de ser admitidos ao
sacerdócio; e Pandiá Calógeras afirma que assim se praticou; que o sacerdócio
foi no Brasil uma espécie de aristocracia branca, exclusivista e fechada.
Talvez o tenha sido até o século XVIII. Observadores estrangeiros dos mais
merecedores de fé - Koster e Walsh, por exemplo - deixam bem clara a existência
- no século XIX, pelo menos - de padres com sangue negro; e alguns até, negros
retintos. Um que Walsh viu celebrando aparatosa missa era tão preto que a cor
escura do rosto ("jetblack visage") contrastava fortemente com a
alvura das rendas e dos paramentos eclesiásticos. Notou entretanto o inglês que
seus gestos revelavam mais decoro que os dos sacerdotes brancos.
Lei por lei, contra a que
declarou "infames os portugueses que se ligassem a caboclas" deve-se
opor a do marquês de Pombal, em sentido justamente contrário: animando o
casamento deles com as índias.
Há tanto que criticar na
política dos colonizadores portugueses no Brasil que para acusá-los de erros
tremendos não é necessário recorrer à imaginação; e fazer do tipo mais
complacente e plástico do europeu um exclusivista feroz, cheio de preconceitos
de raça que nunca teve no mesmo grau elevado dos outros.
Raros os governadores
portugueses no Brasil que tiveram, já não diremos contra os índios, mas contra
os negros, a atitude áspera e intolerante do 8º vice-rei, marquês de Lavradio;
o qual em portaria de 6 de agosto de 1771 rebaixou a um índio do posto de
capitão-mor por ter casado com uma negra e assim "haver manchado o seu
sangue e se mostrado indigno do cargo".
Aliás, já depois de
independente o Brasil houve padres que se recusaram a casar branco com negra.
Padres e juizes. Um dos juizes, o pernambucano Castelo Branco. Mas, atitudes,
todas essas, esporádicas; fora da tendência genuinamente portuguesa e brasileira,
que foi sempre no sentido de favorecer o mais possível a ascensão social do
negro. Estamos, porém, a sair dos limites deste ensaio; e a invadir os de
trabalho próximo.
Os pretos e pardos no Brasil
não foram apenas companheiros dos meninos brancos nas aulas das casas-grandes e
até nos colégios; houve também meninos brancos que aprenderam a ler com
professores negros. A ler e a escrever e também à contar pelo sistema de
tabuada cantada.
Artur Orlando refere que seu
professor de primeiras letras, em Pernambuco, foi um preto chamado Calisto.
Calisto andava de cartola cinzenta, casaca preta e calças brancas." Trajo
de gente lorde. De doutores e fidalgos coloniais com medo de hemorróidas ou já
sofrendo da maldita doença que desde o século XVI parece ter perseguido os
portugueses ricos ou letrados e seus descendentes no Brasil.
O que não é para admirar
andando os colonos dos séculos XVI, XVII e XVIII de roupas tão impróprias para
o clima; veludo, seda, damasco; muitos deles só saindo em palanquins também de
seda, de veludo ou de damasco por dentro. Uns verdadeiros fornos ambulantes, os
palanquins de luxo: cobertos de pesados tapetes azuis, verdes e encarnados ou
de grossas cortinas.
Nas redes e palanquins
deixavam-se os senhores carregar pelos negros dias inteiros; uns viajando de um
engenho a outro; outros passeando pelas ruas das cidades, onde ao se avistarem
dois conhecidos, cada um na sua rede, era costume pararem para conversar, mas
sempre deitados ou sentados nas almofadas pegando fogo.
(…)
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