quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

O colonizador português no Brasil


Gilberto Freyre

O colonizador português no Brasil foi o primeiro entre os colonizadores modernos a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim – para a de criação local de riqueza. Ainda que riqueza – a criada por eles sob a pressão das circunstâncias americanas – à custa do trabalho escravo: tocada, portanto, daquela perversão de instinto econômico que cedo desviou o português da atividade de produzir valores para a de explorá-los, transportá-los ou adquiri-los.

Semelhante deslocamento, embora imperfeitamente realizado, importou numa nova fase e num novo tipo de colonização: a “colônia de plantação”, caracterizada pela base agrícola e pela permanência do colono na terra, em vez do seu fortuito contato com o meio e com a gente nativa.

No Brasil iniciaram os portugueses a colonização em larga escala dos trópicos por uma técnica econômica e por uma política social inteiramente novas: apenas esboçadas nas ilhas subtropicais do Atlântico. A primeira: a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho, mas como elemento de formação da família.

Semelhante política foi bem diversa da de extermínio ou segregação seguida por largo tempo no México e no Peru pelos espanhóis, exploradores de minas, e sempre e desbragadamente na América do Norte pelos ingleses.

A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar, não em grupos a esmo e instáveis; em casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de aventureiros.

Observa Oliveira Martins que a população colonial no Brasil, “especialmente ao norte, constituiu-se aristocraticamente, isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o ultramar; desde todo o princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das turbulentas imigrações dos castelhanos na América Central e Ocidental.

E antes dele já escrevera Southey que nas casas de engenho de Pernambuco encontravam-se, nos primeiros séculos de colonização, as decências e o conforto que debalde se procurariam entre as populações do Paraguai e do Prata.

No Brasil, como nas colônias inglesas de tabaco, de algodão e de arroz da América do Norte, as grandes plantações foram obra não do Estado colonizador, sempre somítico em Portugal, mas de corajosa iniciativa particular. Esta é que nos trouxe pela mão de um Martim Afonso, ao Sul, e principalmente de um Duarte Coelho, ao Norte, os primeiros colonos sólidos, as primeiras mães de família, as primeiras sementes, o9 primeiro gado, os primeiros animais de transporte, plantas alimentares, instrumentos agrícolas, mecânicos judeus para as fábricas de açúcar, escravos africanos para o trabalho de eito e de bagaceira (de que logo se mostrariam incapazes os indígenas molengos e inconstantes).

Foi a iniciativa particular que, concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real, as muitas léguas de terra em bruto que o trabalho negro fecundaria.

Como Payne salienta, na sua History of European colonies, os portugueses colonizadores do Brasil foram os primeiros europeus a verdadeiramente se estabelecerem em colônias, vendendo para esse fim quanto possuíam em seu país de origem e transportando-se com a família e cabedais para os trópicos.

Leroy-Beaulieu assinala como uma das vantagens da colonização portuguesa da América tropical, pelo menos, diz ele, nos dois primeiros séculos, “a ausência completa de um sistema regular e complicado de administração”, a “liberdade de ação” (“la liberté d’action que l’on trouvait dans ce pays peu gouverné”) característica do começo da vida brasileira. “L’organization coloniale ne précède pas, ele suivit le développment de la colonisation”, observa o economista francês no seu estudo sobre a colonização moderna.

E Ruediger Bilden escreve, com admirável senso crítico, que no Brasil a colonização particular, muito mais que a ação oficial, promoveu a mistura de raças, a agricultura latifundiária e a escravidão, tornando possível, sobre tais alicerces, a fundação e o desenvolvimento de grande e estável colônia agrícola nos trópicos.

Isto além de nos ter alargado grandemente para o oeste o território, o que teria sido impossível à ação oficial cerceada por compromissos políticos internacionais.

Texto: Gilberto Freyre, in “Casa-grande & senzala”, Global Editora, São Paulo 2006, 12ª reimpressão, 2020, páginas 79 e 80
Digitação: JP, 7-2-2024

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