Gilberto Freyre
O colonizador português no
Brasil foi o primeiro entre os colonizadores modernos a deslocar a base da
colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal – o
ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim – para a de criação local de
riqueza. Ainda que riqueza – a criada por eles sob a pressão das circunstâncias
americanas – à custa do trabalho escravo: tocada, portanto, daquela perversão
de instinto econômico que cedo desviou o português da atividade de produzir
valores para a de explorá-los, transportá-los ou adquiri-los.
Semelhante deslocamento,
embora imperfeitamente realizado, importou numa nova fase e num novo tipo de
colonização: a “colônia de plantação”, caracterizada pela base agrícola e pela
permanência do colono na terra, em vez do seu fortuito contato com o meio e com
a gente nativa.
No Brasil iniciaram os
portugueses a colonização em larga escala dos trópicos por uma técnica
econômica e por uma política social inteiramente novas: apenas esboçadas nas
ilhas subtropicais do Atlântico. A primeira: a utilização e o desenvolvimento
de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a
sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente
nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho, mas como
elemento de formação da família.
Semelhante política foi bem
diversa da de extermínio ou segregação seguida por largo tempo no México e no
Peru pelos espanhóis, exploradores de minas, e sempre e desbragadamente na
América do Norte pelos ingleses.
A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar, não em grupos a esmo e instáveis; em casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de aventureiros.
Observa Oliveira Martins que a
população colonial no Brasil, “especialmente ao norte, constituiu-se
aristocraticamente, isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o
ultramar; desde todo o princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das
turbulentas imigrações dos castelhanos na América Central e Ocidental.
E antes dele já escrevera
Southey que nas casas de engenho de Pernambuco encontravam-se, nos primeiros
séculos de colonização, as decências e o conforto que debalde se procurariam
entre as populações do Paraguai e do Prata.
No Brasil, como nas colônias
inglesas de tabaco, de algodão e de arroz da América do Norte, as grandes
plantações foram obra não do Estado colonizador, sempre somítico em Portugal,
mas de corajosa iniciativa particular. Esta é que nos trouxe pela mão de um
Martim Afonso, ao Sul, e principalmente de um Duarte Coelho, ao Norte, os
primeiros colonos sólidos, as primeiras mães de família, as primeiras sementes,
o9 primeiro gado, os primeiros animais de transporte, plantas alimentares,
instrumentos agrícolas, mecânicos judeus para as fábricas de açúcar, escravos
africanos para o trabalho de eito e de bagaceira (de que logo se mostrariam
incapazes os indígenas molengos e inconstantes).
Foi a iniciativa particular
que, concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente,
como era exigência real, as muitas léguas de terra em bruto que o trabalho
negro fecundaria.
Como Payne salienta, na sua History
of European colonies, os portugueses colonizadores do Brasil foram os
primeiros europeus a verdadeiramente se estabelecerem em colônias, vendendo
para esse fim quanto possuíam em seu país de origem e transportando-se com a
família e cabedais para os trópicos.
Leroy-Beaulieu assinala como
uma das vantagens da colonização portuguesa da América tropical, pelo menos,
diz ele, nos dois primeiros séculos, “a ausência completa de um sistema regular
e complicado de administração”, a “liberdade de ação” (“la liberté d’action
que l’on trouvait dans ce pays peu gouverné”) característica do começo da
vida brasileira. “L’organization coloniale ne précède pas, ele suivit le
développment de la colonisation”, observa o economista francês no seu
estudo sobre a colonização moderna.
E Ruediger Bilden escreve, com
admirável senso crítico, que no Brasil a colonização particular, muito mais que
a ação oficial, promoveu a mistura de raças, a agricultura latifundiária e a
escravidão, tornando possível, sobre tais alicerces, a fundação e o
desenvolvimento de grande e estável colônia agrícola nos trópicos.
Isto além de nos ter alargado
grandemente para o oeste o território, o que teria sido impossível à ação
oficial cerceada por compromissos políticos internacionais.
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[Livros & Leituras] Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre
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