Gilberto Freyre
(…)
Para a escravidão, saliente-se
mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu
mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro,
porém, parece-nos injusto acusar o português de ter manchado, com instituição
que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio
e as circunstâncias exigiriam o escravo.
A princípio o índio. Quando
este, por incapaz e molengo, mostrou não corresponder às necessidades da
agricultura colonial – o negro. Sentiu o português com o seu grande senso
colonizador, que para completar-lhe o esforço de fundar agricultura nos trópicos
– só o negro. O operário africano. Mas o operário africano disciplinado na sua
energia intermitente pelos rigores da escravidão.
Deixemo-nos de lirismo com
relação ao índio. De opô-lo ao português como igual contra igual. Sua
substituição pelo negro – mais uma vez acentuemos – não se deu pelos motivos de
ordem moral que os indianófilos tanto se deliciam em alegar: sua altivez diante
do colonizador luso em contraste com a passividade do negro.
O índio, precisamente pela sua
inferioridade de condições de cultura – a nômade, apenas tocada pelas primeiras
e vagas tendências para a estabilização agrícola – é que falhou no trabalho
sedentário. O africano executou-o com decidida vantagem sobre o índio
principalmente por vir de condições de cultura superiores. Cultura já
francamente agrícola. Não foi questão de altivez nem de passividade moral.
Teria sido mesmo “um crime
escravizar o negro e levá-lo à América?”, pergunta Oliveira Martins. Para
alguns publicistas foi erro e enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro
método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador
português do Brasil.
Apenas Varnhagen, criticando o
caráter latifundiário e escravocrata dessa colonização, lamenta não se ter
seguido entre nós o sistema de pequenas doações. “Com doações pequenas, a
colonização se teria feito com mais gente e naturalmente o Brasil estaria hoje
mais povoado talvez – do que os Estados Unidos; sua população seria porventura
homogênea e não teriam entre si as províncias as rivalidades que, se ainda
existem, procedem, em parte, das tais capitanias”.
Cita o exemplo da Madeira e dos Açores. Mas essas doações pequenas teriam dado resultado em país, como o Brasil, de clima áspero para o europeu e grandes extensões de terra? E de onde viria toda a gente que Varnhagen supôs capaz da fundação de lavouras em meio tão diverso do europeu?
Terra de insetos devastadores, de secas, inundações. A saúva sozinha, sem outra praga, nem dano, teria vencido o colono lavrador; devorando-lhe a pequena propriedade do dia para a noite; consumindo-lhe em curtas horas o difícil capital de instalação; o esforço penoso de muitos meses.
Tenhamos a honestidade de
reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz
de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil
pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro
capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo.
Compreenderam os homens mais
avisados em Portugal, logo após as primeiras explorações e notícias do Brasil,
que a colonização deste trecho da América tinha de resolver-se em esforço
agrário. Um deles, Diogo de Gouveia, escreveu nesse sentido a D. João III. E ao
decidir povoar os ermos da América, seguiu efetivamente el-Rei o critério
agrário e escravocrata de colonização, já esboçado nas ilhas do Atlântico.
Tudo deixou-se, porém, à
iniciativa particular. Os gastos de instalação. Os encargos de defesa militar
da colônia. Mas também os privilégios de mando e de jurisdição sobre terras
enormes. Da extensão delas fez-se um chamariz, despertando-se nos homens de
pouco capital, mas de coragem, o instinto de posse; e acrescentando-se ao
domínio sobre terras tão vastas, direitos de senhores feudais sobre a gente que
fosse aí mourejar.
A atitude da Coroa vê-se
claramente qual foi: povoar sem ônus os ermos da América. Desbravá-los do mato
grosso, defendê-los do corsário e do selvagem, transformá-los em zona de
produção, correndo as despesas por conta dos particulares que se atrevessem a
desvirginar terra tão áspera. A estes se deve, na verdade, a coragem da
iniciativa, a firmeza de ânimo, a capacidade de organização que presidiram o
estabelecimento, no Brasil, de uma grande colônia de plantação.
(...)
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