sábado, 17 de fevereiro de 2024

Só a casa-grande e a senzala teriam sido capazes de resistir aos obstáculos enormes da colonização do europeu

Gilberto Freyre

(…)

Para a escravidão, saliente-se mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo.

A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo, mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro. Sentiu o português com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço de fundar agricultura nos trópicos – só o negro. O operário africano. Mas o operário africano disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão.

Deixemo-nos de lirismo com relação ao índio. De opô-lo ao português como igual contra igual. Sua substituição pelo negro – mais uma vez acentuemos – não se deu pelos motivos de ordem moral que os indianófilos tanto se deliciam em alegar: sua altivez diante do colonizador luso em contraste com a passividade do negro.

O índio, precisamente pela sua inferioridade de condições de cultura – a nômade, apenas tocada pelas primeiras e vagas tendências para a estabilização agrícola – é que falhou no trabalho sedentário. O africano executou-o com decidida vantagem sobre o índio principalmente por vir de condições de cultura superiores. Cultura já francamente agrícola. Não foi questão de altivez nem de passividade moral.

Teria sido mesmo “um crime escravizar o negro e levá-lo à América?”, pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi erro e enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português do Brasil.

Apenas Varnhagen, criticando o caráter latifundiário e escravocrata dessa colonização, lamenta não se ter seguido entre nós o sistema de pequenas doações. “Com doações pequenas, a colonização se teria feito com mais gente e naturalmente o Brasil estaria hoje mais povoado talvez – do que os Estados Unidos; sua população seria porventura homogênea e não teriam entre si as províncias as rivalidades que, se ainda existem, procedem, em parte, das tais capitanias”.

Cita o exemplo da Madeira e dos Açores. Mas essas doações pequenas teriam dado resultado em país, como o Brasil, de clima áspero para o europeu e grandes extensões de terra? E de onde viria toda a gente que Varnhagen supôs capaz da fundação de lavouras em meio tão diverso do europeu?

Terra de insetos devastadores, de secas, inundações. A saúva sozinha, sem outra praga, nem dano, teria vencido o colono lavrador; devorando-lhe a pequena propriedade do dia para a noite; consumindo-lhe em curtas horas o difícil capital de instalação; o esforço penoso de muitos meses.

Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo.

Compreenderam os homens mais avisados em Portugal, logo após as primeiras explorações e notícias do Brasil, que a colonização deste trecho da América tinha de resolver-se em esforço agrário. Um deles, Diogo de Gouveia, escreveu nesse sentido a D. João III. E ao decidir povoar os ermos da América, seguiu efetivamente el-Rei o critério agrário e escravocrata de colonização, já esboçado nas ilhas do Atlântico.

Tudo deixou-se, porém, à iniciativa particular. Os gastos de instalação. Os encargos de defesa militar da colônia. Mas também os privilégios de mando e de jurisdição sobre terras enormes. Da extensão delas fez-se um chamariz, despertando-se nos homens de pouco capital, mas de coragem, o instinto de posse; e acrescentando-se ao domínio sobre terras tão vastas, direitos de senhores feudais sobre a gente que fosse aí mourejar.

A atitude da Coroa vê-se claramente qual foi: povoar sem ônus os ermos da América. Desbravá-los do mato grosso, defendê-los do corsário e do selvagem, transformá-los em zona de produção, correndo as despesas por conta dos particulares que se atrevessem a desvirginar terra tão áspera. A estes se deve, na verdade, a coragem da iniciativa, a firmeza de ânimo, a capacidade de organização que presidiram o estabelecimento, no Brasil, de uma grande colônia de plantação.

(...)

Texto: Gilberto Freyre, in “Casa-grande & senzala”, Global Editora, São Paulo 2006, 12ª reimpressão, 2020, páginas 322, 323 e 324 
Digitação: JP, 17-2-2024

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