sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Ela só queria ver as Baleias-Jubarte

Aparecido Raimundo de Souza 

Para Amanda, a minha “Barriguinha.” 

QUANDO MINHA FILHA AMANDA me mandou uma mensagem via WhatsApp anunciando que queria que eu patrocinasse uma viagem para o alto mar com a finalidade dela ir ver as Baleias-jubarte, de primeira não dei importância. Não que tivesse algo contra (era tão pouco o valor solicitado) que depois da minha negativa, senti pena. No fundo, a verdade se mesclava num só empecilho. Eu não dispunha de numerários para que a minha garotinha realizasse a façanha, ainda mais com a notícia de que a tal viagem, ajudaria a se livrar, ou pelo menos tentaria se safar de um possível diagnóstico de autismo. 

Fiquei pior que ela. Meio para baixo, ou inteiramente chateado e sem saída, sem saber, inclusive, o que dizer, ou fazer, para amenizar um encantamento que redundava em ser importante para o seu espírito aventureiro. Me vejo, por conta dessa e de tantas outras negativas, como um presságio intransigente para erros irreversíveis. Me maltratam lembranças tristes e infames de que nunca fui um pai presente. Aquele sujeito legal, considerado o porto seguro, o elo inquebrantável e constante, o abdicado e atento à família. Sempre deixei que o abismo existente entre eu e a minha princesa se tornasse mais profundo e descomedido. 

Talvez seja por esse motivo que a nossa relação (hoje) tenha se tornado difícil, de rosto abespinhado, de comunicação estranha, de horas e dias rupturados. Lembro que em uma de nossas conversas, semanas atrás, também via WhatsApp, do nada, sem mais nem menos Amanda, lembrando do meu afastamento, da minha separação dos longevos da sua infância, deixou claro que “não acompanhei seu crescimento.” De fato, lhe assiste inteira razão. Essa divorciação sem causa aparente, por certo, foi o que colocou fogo acendendo o estopim que levou aos domínios da pólvora. 

Ao encostar nela, a explosão medonha ocasionada fez todo o meu passado ir pelos ares, trazendo, de roldão, assuntos e lembranças que deveriam, jamais, ter voltado à tona. Via de um caminho de mão contrária, suscitou lembranças dos tempos dos verdes anos. Ela ainda menina, dona de um sorriso indescritível. O inesperado, por conta, se fez viçoso e abrupto. O tempo em que estive fora (como se fugisse de algo inexplicável), atonou, e, por conta, deflagrou as velhas recordações que se achavam adormecidas. Apenas desfalecidas, não mortas e enterradas. 

Tão somente modorradas, repito —, paralisadas, esperando o triste e melancólico momento de voltarem e dizerem alto e em bom som, que o ontem estava vivo e a todo vapor. Amanda, a minha “Barriguinha,” continua sendo a minha vida. O meu princípio de um novo porvir, levando em conta coisas que, em anos jazidos, naufragaram por água à baixo, como a Carla, minha ex, e de roldão, no pacote, a Narjara (minha outra filha). Com a chegada da Marlucia, meu pedaço de esperança, meus oníricos (mesmo aqueles que não consegui realizar para mim mesmo, tampouco dela, voltaram a ter vida). 

Ser pai ausente hoje reconheço, é como uma doença incurável, uma chaga de diagnosticação difícil. Nesses casos de rupturas, a normalidade se faz e se torna cada vez mais difícil. Tento, apesar dos prós e contras (ainda que a minha maneira, acredito, obviamente de forma errada), compensar essas perdas, esses estragos, enterrando pontos negativo em cemitérios longínquos. Dissabores horrendos. Nem sempre consigo que permaneçam sepultados. Sei que Amanda carrega mágoas como cicatrizes que grudam na pele e não se desfazem. 

Mesmo que os anos passem correndo. Certas angústias e mortificações não se vão como fumaça. Perduram, emburram, martelam insistentes se conservando em evidencia, objetivando manter salvo e em tonalidade segura, o quadro das agruras, a conservação ainda que póstuma dos desagrados que deveriam permanecer soterrados nos cafundós do passado. Quisera voltar ao tempo dos cinco anos, quando no bairro pobre onde morávamos (eu, ela e a Marlucia), ao chegar tarde da noite, fingia ser um bicho papão. 

Fazia uns barulhos estranhos. Amanda, de dentro de casa sorria e se alegrava. Sabia que era eu quem se fazia fora de suas vistas e gritava alegre e brejeira. E quando Marlucia abria a porta, a pequena corria para meus braços e se aninhava em meu peito. Numa outra passagem, ela aos treze (eu separado da mãe dela), ia vê-la no conjunto de apartamentos onde passara a residir. Na hora do nosso adeus, Amanda me acenava e continuava a mandar beijos agitando “tchaus,” até que eu sumisse no distante da rua comprida. 

Tempos magnânimos que não retroagem. Momentos que me fazem sofrer em silencio e morrer um bocadinho a cada nova lembrança; que me fazem perceber menos vivo, tanto na alma, como no coração. Queria voltar no tempo, regressar aos idos do seu nascimento, ficar ao lado dela, segundo a segundo, sem precisar virar as costas e ir embora. Bem sei, tudo virou fumaça, passado, ontem, saudade, nostalgia. Nada restituirá o nosso tempo. O espaço imensurável que perdi, as horas que poderia estar com ela no colo, de relembrar os primeiros passos, de correr, de brincar com ela no quintal imenso, de guardar o primeiro dentinho que caiu, de curar o primeiro machucado... de esquentar as mamadeiras... 

Sempre fui um zero ao oposto, ao contrário do futuro que se abria para ela. E em dias recentes, quando ela me disse que queria ver as baleias-jubarte, dei contra. Ou seja, continuei e sigo na contramão, me fazendo um “presente-pai-ausente-eterno.” Um pai baldado, improfícuo, sem juízo, vazio, oco, desapossado do carinho nascido do mais profundo do âmago; um imbecil que nunca será visto como herói. Talvez sejam esses pequenos mimos que me fazem continuar respirando. Vivendo, grosso modo, para que sinta na carne, na pele, na fragilidade da velhice, e pague, como um castigo duradouro, pelo tempo que me resta a ser vivido. Meu Deus! E pensar... tanto tempo ficou lá no efêmero... e ela... ela, a minha “Barriguinha,” só queria ver as baleias-jubarte. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 16-2-2024  

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