sexta-feira, 22 de março de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Tudo o que é mal começado...

Aparecido Raimundo de Souza

NESSA MANHÃ
ensolarada acordei suando em bicas. Liguei a televisão no canal que assisto diariamente. O desgranhento do repórter jogou para cima de mim um caminhão de notícias sem eira nem beira. Se não sou esperto, acabava atropelado por um ônibus desgovernado na sua trajetória malparida. O bruto, quase acabou com os cornos de um poste que morava numa calçada do passeio público. A armação de concreto, safa como um gato, deu um pulo fenomenal, deixando, entretanto, o transformador, lá no topo, com os bugalhos espantados de medo e terror. Sem mais delongas desliguei o aparelho, tomei um banho, me vesti e desci para a padaria onde tomo meu café matinal. A bebida, para início de conversa, estava deliciosa. O pão com gosto de recém-saído do forno, a manteiga sem ranço e a xícara –, novinha como saiu do ventre da caixa onde se abrigava.

A xicara me encarou com uma tez indescritível. Não parou aí. O pires lavado com esmero, deu a impressão de que o responsável pela lavagem das louças lá nos cafundós da cozinha regurgitava de bom humor. Tudo indicava fizera a esposa na alcova barulhenta antes de sair para o batente virar às avessas os prazeres do sexo. Somente uma coisa não coadunava com o espírito gracioso do dia indubitável. Olhando de dentro do recinto para fora, o céu lá em cima me parecia ter esquecido de se vestir com nuvens de boas-vindas. Foi nesse começo de dia (um pouco antes das oito,) eu vi e não só vi, conheci a Bianca. Ela entrou estabanadamente no amplo salão com um guarda-chuva encharcado de calor pingando um amontoado de sorrisos tímidos pelos passos que imprimia sobre o chão de ladrilhos brancos.

Seus olhos verdes como alfaces prontas para serem colhidas, se faziam inquietos. Num meio que distorcido, encontraram os meus por um breve instante. O sol, num fugaz, pareceu ter se infiltrado em sua alma, como um dardo no coração de um pobre coitado deixando-o vulnerável e desajeitado aos cuidados de um amor infinito que me afigurou pronto para leva-lo a um êxtase anunciado. Bianca, apesar da bagagem meio “mala sem alça,” trazia no rosto um enigma indecifrável. Suas palavras ao garçom soaram como notas musicais desafinadas saídas de um piano faltando teclas. Sua risada, uma mistura de nervosismo sem pátria destituído de qualquer tipo conhecido de gentileza. Enquanto esperava pelo pedido, abriu um livro. Percebi que gostava de poesias. O livro, um exemplar de Fernando Pessoa.

Eu, pelo outro (meu lado,) preferenciava o silêncio denso e pesado dos romances de escritores dos tempos de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Nossos encontros a partir de então, passaram a ser somente ali na padaria. Esbarrões moldados ao sabor de xicaras e xícaras de café com leite, sob o pretexto de discutirmos literatura. Ele falava sobre Vinícius de Morais, Cora Coralina, Ferreira Gullar e, de roldão, emendava sobre o verdadeiro sentido da vida (qual seria?!,) a juventude esquisita, os tempos difíceis, enquanto eu me perdia na textura do açúcar se dissolvendo nas bebidas costumeiras das engraçadas tiradas humorísticas de Luiz Fernando Veríssimo. Às vezes, as nossas mãos se tocavam num jacular quase acidental, e eu sentia um arrepio meio inteiro, um calafrio de gozo “assobrergético e camalioso” a percorrer desordenadamente a minha espinha –, não só a dorsal –, como a capital.

Nessa troca de poetas e escritores, entretanto, havia algo errado. Bianca nunca mencionava o futuro como uma coisa gostosa de se ver e sentir. Não falava sobre planos, sonhos ou o que poderia ser construído num vindouro às portas do nosso começo de “conhecimento quase às raias de acabar no tapete da minha sala.” Ela vivia num agora envidraçado, como se o passado e o futuro fossem apenas sombras distantes por detrás de espessas coberturas de vidros. Eu, tolo, meio que atordoado, uma besta dos pés à cabeça e vice-versa, me deixei envolver por essa dança tresloucada de passos incertos e toques furtivos de dedinhos bobos em lugares consentidos. Nossos beijos se assemelhavam as chuvas de verão: intensos, perfunctórios, e cheios de promessas que em nenhum momento tinham a apetência de se fazerem verdadeiramente reais.

Nessa coisa de pega me larga, me esmaga e me domina, um engraçado detalhe me encafifava os fundilhos do peito. Quando o sol se escondia, Bianca se exauria. Mergulhava numa espécie de buraco sem fundo. De cabeça, a criatura afundava. Mirrava, esvanecia, como éter em recipiente sem tampa. Do nada, evaporava. Em contínuo, não atendia minhas ligações, não respondia às mensagens via WhatsApp. Passei a me sentir como uma folha seca levada pelo vento (igual aquela canção do Amado Batista.) Sem rumo, sem destino, sem porto onde atracar meu jegue –, digo onde amarrar meu barco. Me resguardei. Dessa forma meio que insondada e curiosa –, ou dito de maneira mais abrangente –, alienígena e esquisita nosso relacionamento mal começado se arrastou por seis semanas.

Eu, no calor da felicidade, esperava por ela; como quem se debruça na folha do próximo capítulo de um livro inédito cujo final me parecia ser emocionante. Mas Bianca nunca se mostrou como uma personagem de carne e osso, bem escrito e com epílogo que deixasse saudade. A custo penoso, a poder de remédios com bulas de noites passadas às claras, cheguei a conclusão de que aquela pessoinha não ia além de um rascunho, ou de uma história incompleta. Assim foi até que num sábado (mesma mesa onde nos sentamos pela primeira vez) ele apareceu com um olhar de peixe morto, o semblante cheirando a robalo triste e uma carta nas mãos. “Preciso cair fora” –, disse. E emendou: “Ganhar o mundo. Me embrenhar por outros ares ainda não respirados pelos buracos do meu nariz.”’ Vomitou assim, na lata, sem rodeios. “Não sou uma excelência em finais felizes.”

Cabisbaixada, o pranto rolando e fazendo sulcos na pele, Bianca foice. (foice, ou foi-se?!) Nenhuma coisa, nem outra. Perdão, Bianca se foi. Me deixou como acompanhamento o gosto do café com leite não doce, mas amargo e a sensação do pão dormido e com manteiga estragada, e piormente, a certeza de que o amor é como um texto inacabado: cheio de vírgulas, pontos de interrogação e reticências em lugares errados. Penso, agora, com meus encafifamentos: talvez tenha sido melhor assim. Afinal –, sem final, nem todas as histórias mereçam um epítome radioso, vestido à rigor, com desenlaces impecáveis. Desfechos nesse patamar se enquadram mais para Lisa Kleypas, Julia Quinn e Ariano Suassuna. Nesse vácuo devoluto, como o daquele dia de manhã ensolarada, me lembro de Bianca e seu guarda-chuva.

Me recordo como se fosse hoje das suas palavras desafinadas, do seu sorriso tímido. E percebo que, às vezes, os relacionamentos começados são como crônicas de um autor ao acaso: intensos, efêmeros e eternamente marcados em nossa memória por uma péssima sensação de que fomos esquecidos e ludibriados ou entupigaitados. O mais degradante: que logo ali na próxima esquina, aparecerá um ônibus sem freio à cata de um poste de luz atarracado a um transformador com a fuça de uma mula paralítica sem canja; de pobre sem picanha na mesa do almoço e fechando o ciclo; de um Gilmar Fendes com a sua boca de sapo à procura de um brejo sujo de merda para enfiar o seu esqueleto odioso de tarado-maluco. Nada aquém de uma venustidade apodrecida em total e profunda caminhada à passos largos para a cidade dos que saboreiam capim pela raiz.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Aeroporto Internacional de Viracopos, Campinas, interior de São Paulo, 22-3-2024

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Um comentário:

  1. Aparecido (ou simplesmente Apa). No dia 19 de março, indubitavelmente, foi um dia especial, pois você completou mais um ano de vida. Setenta e um. Que esse ano (e os demais a virem), seja tão especial como você é para mim. Igualmente, que a saúde, a paz, o encantamento e o sucesso façam parte constante dos seus melhores instantes. Não só hoje. Amanhã e sempre. Continue assim. Sorrindo para a vida, brincalhão e descontraído, 'saltitante' e dono absoluto de si. Siga alegre, de cabeça erguida e a certeza do dever cumprido. Acredite, somente assim, ela, a vida plena, seguirá lhe retribuindo com muitas coisas boas. Com todas as minhas forças, eu te desejo um FELIZ ANIVERSÁRIO. Atrasado, mas você sabe, no dia 19 p.p., estávamos juntos, em viagem. Que seu caminhar seja sempre premiado com a presença de Deus, o Pai Maior e com Jesus Cristo guiando seus passos e intuindo as suas decisões, para que as suas conquistas e vitórias se façam constantes. Tenho certeza, eles serão muitos e muitos e infindos. Apa, que a vida continue sorrindo e presenteando você com as melhores graças, sempre com muito amor, com muita saúde, amizade e mil, mil, mil Felicidades. Desejo ainda, do fundo do meu coração, e não só dele, do mais profundo da minha alma, à você e para você, dias à frente felizes, alegres e saltitantes (como o passado 19 de março sei perfeitamente que foi) inesquecível. Que você possa celebrar a vida em toda a sua plenitude em muitos outros19 de março vindouros. De novo, em repeteco, hoje e sempre, a celebrar com as Graças do Pai Infinito, todos os dias da sua vida. Que bom e maravilhosamente excelente estar a seu lado. Parabéns e muitas, muitas e muitas FELICIDADES!
    Carina Bratt
    Sua secretária.
    De Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo.

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