quinta-feira, 21 de março de 2024

A surpresa

Imagem gerada por Inteligência Artificial, Bing Image Creator

Luís Naves

Muitos emigrantes portugueses na Europa votaram no Chega e temos de perguntar o que se passa com o projeto europeu. As votações mais expressivas foram na Suíça, Luxemburgo e Brasil, mas em todos os consulados da UE houve forte inclinação para a formação de extrema-direita, o que é surpreendente, já que os dois círculos eleitorais da emigração escolhiam tradicionalmente os dois grandes partidos e havia tendência para voto útil. Talvez parte da explicação esteja na política interna dos países, com marés de protestos eleitorais que terão profundo efeito nas eleições europeias de junho.

A Europa está a mudar depressa, tem medo da Rússia e desconfia dos EUA, criou um sistema que não é socialista nem liberal, que avaliou por cima as suas capacidades. Na crise das dívidas soberanas, a solidariedade dos ricos foi um simulacro. O bar aberto das migrações, em nome dos "valores europeus", visou conter os aumentos de salários e prejudicou os mais pobres. A tecnocracia não eleita de Bruxelas humilhou Estados-membros, teimou em erros, nomeadamente insultando países terceiros. Parte da classe média empobreceu, os protestos dos trabalhadores foram ignorados, os serviços públicos degradaram-se, a despesa social diminuiu, as indústrias partiram para a Ásia, os privilegiados promoveram guerras culturais identitárias que a população recusava.

A estratégia da guerra da Ucrânia, subordinada desde o início aos interesses americanos, deu a machadada final: dependíamos da energia barata vendida a pataco por Moscovo, agora não temos meios para enfrentar uma Rússia que não se rendeu após as primeiras sanções. A hipocrisia ocidental é evidente e está em curso uma mudança que implica enterrar de vez as ilusões federais, embora o pânico dos políticos continue a impedir qualquer rasto de lucidez.

Os nossos emigrantes na Europa votaram maioritariamente no Chega e alguns observadores interpretam isso como a escolha da ralé pouco esclarecida. Esquecem-se daquilo que escreveram sobre os milhares de compatriotas forçados a emigrar por não terem condições de trabalho compatíveis com os seus altos diplomas académicos.

Basta uma pequena consulta de sondagens e perspectivas eleitorais para se perceber que os movimentos conservadores, soberanistas e populistas na Europa estão a crescer em todos os países, podem tornar-se maioritários na Holanda, Bélgica, França, Áustria (pelo menos), já conquistaram a Itália, terão votações expressivas na Alemanha, Finlândia, Suécia, Portugal, Espanha, entre outros. Há diferentes movimentos de contestação, também de extrema-esquerda ou nacionalistas. São fortes em Espanha, França, Reino Unido, também em certos países de leste, onde aliás a esquerda convencional não é socialista, mas pós-comunista, e a direita não é liberal, mas conservadora e nacionalista. O problema é que os políticos e jornalistas têm simplificado os termos que usam, põem tudo no mesmo saco dos deploráveis.

A Europa está a ser construída sem a participação das populações. Ela será federal, desindustrializada, politicamente correta, ideologicamente pura, tecnocrática, dominada pelos grandes países e por uma elite burocrática não eleita. Tem como metas a redução das emissões de gases com efeito de estufa, transição energética acelerada, redução da produção agrícola (por isso precisam da Ucrânia) e acesso a massas de migrantes que permitam manter todos os serviços ultra-baratos. O programa é impopular, imposto de cima para baixo, estando a alimentar uma rebelião eleitoral agravada pelos efeitos de uma guerra da Ucrânia que o Ocidente está a perder.

Todos os dias ouvimos apelos ao rearmamento da UE e ameaças de envio de tropas, mas o que está em causa é outra coisa, a reindustrialização com fundos públicos. As ações da Rheinmettal valiam 62 euros em 2020 e agora valem 478; as da Thales passaram de 74 euros para 150; a ZBM polaca valorizou 65% só nos últimos doze meses e a BAE Systems 179% em cinco anos. Os fabricantes de armas não têm razões de queixa, o negócio não anda nada mal.

Título e Texto: Luís Naves, Delito de Opinião, 21-3-2024

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