domingo, 24 de março de 2024

[As danações de Carina] Pelo olho mágico

Carina Bratt

CHOVIA TORRENCIALMENTE. O céu parecia chorar ao som barulhento de um dilúvio interminável. Ainda deitada, estiquei o pescoço e esquadrinhei a barulheira pelo vitrô. Me escondia num quartinho de uma casa velha e cheia de rugas, que se erguia rente à rua. Nossa! A cara do tempo, dava a impressão sinistra de que todas as mágoas do mundo estivessem abraçadas aquele aguaceiro que rolava sem dó nem piedade. Sozinha comigo mesma, debaixo de uma luz fraca vinda de uma lâmpada pequena iluminando o cômodo (tinha um medo danado de escuro), desviei os olhos. Mirei à porta de entrada. Nesse instante, cruzei com o olho mágico orificiado nela. Não era esse cidadão (o olho mágico, bem entendido), um vigilante comum, desses que você encontra em qualquer espelunca de entrada. Se fazia, apesar da pobreza do lugar, numa coisa significantemente diferente. Mostrava ser um sujeito posudo, dono de si e especial. Parecia ter vida própria, como se escondesse segredos e histórias de antigos inquilinos vindos antes de mim.

Pulei do colchonete e me aproximei, curiosa. Bisbilhotei através dele. Do outro lado –, ou seja –, o de fora, topei com um mundo completamente diferente. Esquadrinhei uma rua (rua não, viela) estreita, com casas antigas e janelas descoloridas sonhando com escancaros de um canto a outro dos ouvidos. Tipo uma mala sem alça. Guarda chuvas e sombrinhas passavam de um lado e de outro com pessoas apressadas. A cena parecia, tipo assim, uma feira de domingo. Um furdunço saído de um conto de fadas (sem fadas) de um escritor iniciante e sem noção do que realmente pretendia escrever. Fiquei ali, colada à madeira carcomida, na ponta dos dedos dos pés (das mãos seria impossível), esmerilhando o dia nublado, como se fosse um voyeur (melhor seria ‘uma voyeur’) das vidas alheias. Num repente, um casal de idosos surgiu dançando. Seus ossos se moviam em harmonia. Em seguida, surgiram crianças brincando na calçada. Piás e gurias completamente encharcadas, os cabelos e roupas pingando como se fossem goteiras em telhas compradas no tempo ‘do ronca.’ 

Elas riam estabanadamente e corriam sem preocupações. Um homem solitário sentado em um banco de madeira sem pernas (não o homem, o banco), olhava para o infinito como se buscasse respostas. O olho mágico me assediava intercalando momentos de felicidade, tristeza, amor e solidão. Não necessariamente nessa ordem. Como se eu pudesse sentir as emoções daquelas pobres almas vivendo as suas vidas por um instante sem hora de acabar. Foi então, algo estranho aconteceu. Uma mulher com cara de Frida Mancini –, perdão –, de Arlete Salles, vestida de amarelo parou em frente. A engraçadinha comboiou a sua falta do que fazer diretamente para o olho mágico, como se soubesse que eu estava aqui dentro igual a ela, filmando, perscrutando como se buscasse algo. Seus olhos se faziam profundos e cheios de um mistério meio que falso. Num dado momento acenou com a mão esquerda e sorriu para mim. Eu não sabia o que fazer. Me senti como se embrenhada na trama do novelista Daniel Ortiz, como se, por mero acaso, fosse uma de suas netas, ou mais precisamente a Andrômeda.

Pensei com meus receios à flor da pele: ‘será que deveria abrir a porta e entrar naquele mundo?; será que poderia viver todas aquelas histórias como se enredada num folhetim repleto de cavilações;? E se tal ideia fosse perigosa;?... e se nunca mais conseguisse voltar ao meu mundinho de menina pobre?...”” No final, não resisti. Escancarei a porta de uma banda da bunda à outra e me vi do outro lado. O logradouro ficou mais estreito. As casas antigas murcharam como essas bolas enfeitadoras de festinhas de aniversários fossem, num piscar de dentaduras mordendo uma caneta esferográfica estouradas, uma a uma, por duendes barulhentos e espalhafatosos. Os transeuntes, com seus guarda-chuvas coloridos, sombrinhas e capas plásticas ambulavam indo e vindo, sem se importarem com a chuva a cântaros. A mulher de vestido amarelo –, lembrando –, a Arlete Salles, estava como uma cadela molhada esperando por mim. Dessa forma fora de foco e totalmente extravagante, me tornei parte ativa daquela realidade anormal e paralela ao meu cotidiano.

O olho mágico continuou firme e forte. Me transportou para lugares que nunca imaginei. Me mostrou vidas que eu nunca conheci. Me entrosei com seres fagueiros e cômicos, longevos e moços melodiosos. Final de tudo, o encanto se desfez. A chuva seguiu a chover sem preocupações de pausa para uma ida ao banheiro urinar. Euzinha, nessa frescura da quase neurastenia, me enfiei debaixo de um cano de água à guisa potente de onde um dia, acredito, deveria existir um chuveiro decente. O toró dele saído (do cano, pelo amor de Deus...), se faz frio, quase gelado. Sigo, pois, apesar dos pesares, alegre e sem melindres, dentro do box quebrado. O encanamento que acessa o ralo me pediu um lenço. Está com o nariz entupido. O suor e os pecados do meu dia anterior incrustrados em meu corpo, se esborram junto com o líquido fluindo para além do quadrado e pouco falta para encharcar meu nobre lugarzinho de descansar a caveira ‘enfrangalhada.’ Daqui a pouco, o café, o pão dormido, o suco de uva sem açúcar. Curto a minha chuvinha particular sem reclames e objeções.

Tudo pelo fato de ter acordado, pulado do colchonete, encarado o vitrô e, ao invés de cuidar da vida, me aprontando para o trabalho, perdido um tempo precioso direcionado a bisbilhotice enxerida para a porta do cubículo –, ou melhor dito –, para o olho mágico, como se estivesse extravagantemente cuidando de algum problema muito sério, uma questiúncula besta que, no fundo, às barbas da verdade, não tinha nenhuma ligação direta ou indiretamente comigo. Resumindo toda essa conversa fora de esquadro. Vivi ou acho que vivi, sei lá, um sonho abarrotado de ‘idiotizações.’ Não importa. Sou a Arlete Salles –, digo a Frida Mancini, ‘preocupadérrima’ com a Andrômeda. Se ao menos, ao oposto de Andrômeda, eu pudesse trocar as bolas, ou os papéis e virar Mercúrio, Merthiolate, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Vênus (não a de Milo), ou Electra... quem sabe... eu não me sentisse uma Putona, perdão, uma Plutana. Credo em Cruz! Chega de tanta besteira. Deus é mais!

Título e Texto: Carina Bratt, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 24-3-2024

Anteriores: 
Das canções que se fizeram eternas
De repente, o inesperado 
[As danações de Carina – Extra] Dia da Mulher: essa combatente incansável 
Caixinha de música 
A Morte nunca bate na porta 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-