domingo, 3 de março de 2024

[As danações de Carina] Caixinha de música

Carina Bratt

ERA UMA CAIXINHA de música comum, com uma bailarina dançando sobre um pequeno palco ao som de ‘Le Temps des Cerises,’ Minha avó Belinha não sabia quem encarrilhara aquela obra-prima, ou que cantor ou cantora a interpretavam  originariamente. Só sabia o nome da melodia. Essa preciosidade ficava no quarto dos meus avós – pais da minha mãe, numa parte do guarda-roupa, onde somente ela tinha acesso e guardava ao lado de um amontoado de produtos de beleza.

Havia também, nesse compartimento, um espelho ovalado com pequenas gavetas logo abaixo, todas repletas de pequenas quinquilharias. Numa se destacavam grampos de prender cabelos, tesoura de unha, alicate, lixas, pentes, escovas e bobs de cores variadas. Na outra, vovô acondicionava suas moedas, o relógio de bolso, as chaves do carro, documentos e lenços, entre outros pequenos pertences de uso diário.

Sempre que a vó Belinha tinha que se aprontar para sair, invariavelmente ir à missa de domingo, tomava seu banho e, em seguida se postava diante daquele espelho e perdia um bom tempo enfeitando o rosto e mexendo nos fios de cabelos que lhe caiam em cascata até a altura dos ombros. Nessas horas, abria a pequena caixinha de música. A bailarina, ao som de um piano logo se punha em movimentos cadenciados, com seu vestidinho azul marinho, os sapatinhos brancos, os cabelos presos numa fitinha vermelha, acompanhando o som calmo da toada inconfundível que inebriava a alma e engalanava o ambiente.

Ao ouvir o som daquele arranjo simétrico, não sei por qual razão me fazia viajar em sonhos. E, de fato, viajava. Ia longe. Largava o que estivesse fazendo no quintal imenso e, de mansinho, pé ante pé, parava para espiar pelo batente comprido da porta entreaberta. Às vezes me sentava, quieta, no corredor, entre a parede da cozinha e o quarto e me deixava ficar sem pensamentos a escutar aquela ária que docemente se achegava, me tocava os ouvidos ternamente e depois invadia todo meu ‘eu’ interior. 

Sempre nessas horas, uma espécie de magia indescritível se propagava pelo ar. Aliás, por todo o ambiente. A modinha suave estendia a sua presença por todos os cantos e recantos da residência. Entrelaçava de forma magistral o quintal imenso, ultrapassava as margens da nascente do Rio Belém logo ali à beira da cerca de arame, e tudo dava a impressão de entrar em branda sintonia em vista do som coordenado que saia de dentro da caixinha.

A bailarina, por sua vez, se fazia esplendorosa, vigorosa e incansável. Embora magra e alta, não parecia se cansar nunca de dançar. Seus gestos leves, suaves como plumas soltas ao vento, envolviam meus olhos numa sequência de pequenas quimeras que explodiam à medida em que a composição ordenada seguia tocando.

Tudo rodopiava num único som como se um imenso carrossel não tivesse hora para estancar seus giros. Todavia, a mim, esse carrossel me dava a impressão de uma orquestra invisível, ao comando de um piano e da batuta de um maestro igualmente encantado (que só meus pensamentos avistavam). Foi assim por muitos anos.

Belo dia, a caixinha sumiu. Vó Belinha deu falta horas depois. Procurou daqui, dali e nada. Alguém, de modo sorrateiro, na surdina, na calada de quando ela não estava perto, deve ter vindo e levado a bailarina. Num bandalho malsonante ao ato, o espetáculo que ela e o maestro juntamente com a singeleza que a peça erudita propiciavam, se fez emudecido. 

A pergunta que ainda me faço até agora: com que objetivo alguém surrupiaria uma coisa assim? Um mimo que só entrelaçava os devaneios de vovó, na altura dos seus noventa e nove anos e, logicamente os meus? Não obtenho resposta. Sei apenas que o som da caixinha sumida se fez pesado e denso. Procuramos com afinco e destreza por todos os cantos e recantos. Por via das dúvidas garimpamos pelo quintal, reentrância por reentrância. Apesar dessa busca minuciosa, a preciosidade que fora presente de meu avô, num dos aniversários de vovó nunca mais deu sinais de que apareceria. 

A vó morreu um pouco a cada dia na sua tristeza agonizante. Seus olhos embaçados e de pouca luz, se toldaram numa solidão imensurável. Suas rugas cresceram de tamanho no rosto quase sem vida e cor. O tempo passou e, de fato, a caixinha de música com a bailarina nunca mais foram vistas. Uma semana depois, ou no dia em que a vó veio definitivamente à óbito, juro que no velório eu ouvi a música tocando em algum lugar.

Também senti no meu peito, e, certamente, no coração da minha avó. A caixinha pode ter sumido, pode ter sido roubada, furtada, levada, escondida... sei lá. Contudo, apesar dessa ausência, ímpar, a música da bailarina deu um toque novo e significativo de vida plena ao desgostoso fúnebre no meio do velório. E vovó se foi, Terra à baixo, embalada na eufonia do ‘Le Temps des Cerises,’ com a bailarina dançando, incansável, faceira, linda e insubstituível.

Às vezes sonho que lá no céu, o mesmo maestro segue como líder, controlando o ritmo do piano, a direção, e os passos cadenciados da bela e incansável criaturinha –, a bailarina com seu vestidinho azul marinho, os sapatinhos brancos, os cabelos com a fitinha vermelha..., e dentro do meu espírito de ‘neta apegada,’ tudo se eternizou como um milagre que DURARÁ PARA SEMPRE.

NOTA DE ESCLARECIMENTO: a música acima mencionada no texto, ou seja, a que melhor me fez lembrar desses momentos inesquecíveis, pode ser ouvida nos vídeos abaixo.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 3-3-2024

Anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-