domingo, 17 de março de 2024

[As danações de Carina] Das canções que se fizeram eternas

Carina Bratt

HOUVE UMA época em que não existia uma doença crônica chamada ‘digital.’ As músicas desse tempo tinham um sabor diferente. As melodias fluíam dos discos de vinil como água límpida de nascente. Vez em quando, surgia um engasgo, ou um arranhão. A agulha sobre o LP, ou (Long Play), empacava numa faixa qualquer fazendo com que a maviosidade do que se ouvia ficasse capenga, meio que aleijada.

Esse inconveniente atrapalhava a memória do vinil, fazendo com que, em cada ‘puladinha,’ o som atormentado pelo caroço desse um retrospecto no tempo. As capas dos álbuns também não ficavam a dever nada. A meu entendimento, verdadeiras obras de arte, sem falar nas contracapas e nos encartes que traziam à baila as histórias do artista, as letras do que ouviríamos antes mesmo da agulha tocar a superfície brilhante.

Os antigos ritmos do rock, o balanço do jazz, e a alma da bossa nova, bem ainda os cantores dos tempos dos meus avós e de meus pais, se entrelaçavam em harmonias que definiram gerações. E acredito, ainda agora, nos ensinam coisas diferentes. As músicas antigas dos meus idos de menina, tinham o poder de pararem o tempo, de frearem o futuro, de transportarem aqueles que as ouviam para uma quadra longínqua, onde a simplicidade, o bom gosto, a ternura e a exaltação ao amor, lembrando –, para (os que tinham ouvidos musicais apurados –, se deparassem com a chave para a felicidade.

Meu pai amava Nat King Cole. Tinha ao lado da vitrola (ele apelidara o trambolho de ‘Picape e seus negrinhos.’ (Picape o toca-disco e Negrinhos os bolachudos, ou bolachões), uma coleção magnífica com centena de Lps. Em especial, colecionava todos as gravações desse norte americano nascido aos 17 de março de 1919, ou seja, se ainda estivesse vivo, hoje, domingo, Nat estaria apagando um bom número de velinhas. Desde então, lá se foram 105 anos. Papai amava ‘When I Fall In Love’ ou ‘Quando eu me apaixono.’  Conquistou o coração de mamãe cantado para ela (a seu modo), logicamente... 

‘...Quando eu me apaixonar
Será para sempre
Ou eu nunca
Me apaixonarei

Em um mundo agitado
Como esse
O amor
Acaba antes
De começar

E tantos beijos
Ao luar
Parecem esfriar
Ao calor do sol

Quando eu der
Meu coração
Será por inteiro
Ou nunca darei
meu coração

E no momento
Eu posso sentir
Que você também,
Se sente
Assim

É quando
Eu me
Apaixonar
Por você...’”

Esse tempo que não volta, que não ressuscita, representava um período de descobertas, onde cada nova canção alimentava um tesouro escondido a ser compartilhado. As pessoas se reuniam para ouvirem os últimos sucessos, desse ou daquele cantor, ou cantora, discutirem as letras e se perderem nas entrelinhas das composições impecáveis. Os artistas já nasciam ícones, e, de suas vozes, resplandeciam o eco de uma juventude vibrante e cheia de sonhos. Uma juventude que infelizmente não regressa, não retoma, tampouco restitui um tempo de magnificências e louçanias.

Hoje, em nossos dias que considero de ásperas agonias, essas músicas antigas são como cápsulas do tempo preservando a essência de raridades impagáveis, prodígios que se foram como quimeras de asas douradas em voos sem volta ao agora –, ou ao nosso presente. Aliás, não se foram. Permanecem inalteráveis. Nat King Cole, Sergio Endrigo, Charles Aznavour, Édith Piaf, Elvis Presley e tantos e tantas mais, seguem edificando e embevecendo a inspiração, agigantando o nosso ego, e nos fazendo lembrar que, embora o mundo mude para pior, a cada minuto, apesar dessas drogas e porcarias, imundícies e obscenidades que ouvimos, o toque sutil da fascinação e da suavidade da música verdadeira será indubitavelmente imorredoura e insubstituível.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 17-3-2024


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