domingo, 25 de fevereiro de 2024

[As danações de Carina] A Morte nunca bate na porta

Carina Bratt

FAZIA UMA TARDE COMPRIDA e cinzenta, dessas que parecem carregar o peso do mundo nos ombros. As nuvens se arrastavam preguiçosamente pelo céu, como se relutantes em deixar cair a chuva que há tanto tempo se escondia. Naquela rua estreita, de casas antigas e janelas cerradas, vivia dona Santinha uma senhora de quase noventa anos, os cabelos prateados e os olhos quase cegos de cansados.

Dona Santinha não era uma mulher de muitas palavras. Seu silêncio se fazia fiel como uma armadura que a protegia das agruras da vida. Ela vivia sozinha, numa casa de paredes desgastadas, o telhado carecendo de ser trocado e o muro, ao redor, necessitando ser derrubado e erguido um novo no lugar. Dona Santinha vivia ela e Deus, com suas lembranças e fotografias amareladas. 

O marido havia partido fazia anos, levado pela doença que não bate na porta, nem pede licença, nem manda aviso que está chegando. Aliás, a doença, para a maioria das pessoas (notadamente para os pobres e necessitados), entra sorrateiramente, como um ladrão na calada da noite. Naquela tarde, enquanto a chuva fina começava a cair, ela se arrastou até uma das janelas e observou as gotas escorrendo pelos vidros. 

Por instantes pensou no velho Chiquinho, seu marido, nas risadas deles, no cheiro do café que ele preparava todas as manhãs. Sentiu saudades, também uma estranha sensação de alívio. Lembrou que a Morte não bateu na porta deles. Ela simplesmente entrou e o levou consigo. Dona Santinha não temia a Morte. Ela a via como uma velha amiga, uma companheira que a esperava pacientemente do outro lado encostado no lugar onde deveria existir um portão. 

Ela sabia que, um dia, também deixaria tudo e partiria.  Não tinha pressa. A vida ainda lhe reservava pequenos prazeres: o sol à pino; o cheiro das plantas; o barulho da chuva cantando forte no telhado; o gosto do bolo de fubá que fazia nas tardes ensolaradas; o som inconfundível do piano que tocava para seu velho companheiro quando ele se sentava no chão ao lado da banqueta para se deleitar e agora; quando tocava para afugentar a solidão pesada que insistia apertar o peito. 

À noite, enquanto o vento uivava lá fora, dona Santinha acendia uma vela e olhava para as fotografias do marido e dos filhos. Tantos janeiros juntos, tantos filhos, tantos netos. Num repente inesperado, num ‘vapt-vupt, chicoanysiano,’  todos se foram. Viajaram em direção ao futuro. Os filhos cresceram e casaram. Os netos cresceram e constituíram novas famílias. Dona Santinha sorria cansada, fatigada, os olhinhos vermelhos e cheios de uma ternura imorredoura.

Num desses longos dias, ela se fechou numa tristeza maior que as outras e sentiu a presença de seu querido e amado companheiro. Atinou com seus trapos e farrapos, como se ele estivesse ali, sentado ao seu lado. Na verdade, a Morte não bateu na porta; ela apenas deu as caras e os separou por um breve instante. Dessa forma, dona Filhinha continuou a sua vidinha tranquila, a sua jornada em direção à coisa alguma. 

Esperou pacientemente até o dia em que a Morte, finalmente veio buscá-la. A anciã não tinha um pingo de medo.  Ela não tinha sequer um tantinho assim de receio. Afinal, a Morte, bem sabia, não bate palmas. Ela apenas chega de mansinho; de leve; na moita; se aproxima sorrateira; se encosta sem aviso; se avizinha sem alarido e (querendo ou não), envolve. Não poderia ser diferente com a dona Santinha.  

E assim foi. A Morte chegou e se abriu num sorriso ebriático (aquilo que causa ebriedade e culmina em algo estonteante). Em seguida, lhe estendeu o braço e a convidou meigamente a seguir com ela. Antes de partirem em definitivo, dona Santinha ofereceu bolo de fubá e café. A Morte não quis. Preferiu ouvir a longeva ao piano. Depois dessa recepção, saíram ambas, caminhando vagarosamente para um lugar distante, bem longe da terra, onde não há dor nem saudade. APENAS TRANQUILIDADE E PAZ

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 25-2-2024 

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