domingo, 21 de janeiro de 2024

[As danações de Carina] É vida que segue

Carina Bratt

NA CERIMÔNIA FÚNEBRE que fui ontem, sexta-feira, acompanhando uma amiga, o defunto realmente, sem tirar nem pôr, expressava a cara tétrica de um velório penoso e afadigado. Dito de maneira mais abrangente (para englobar tudo e não ficar nada de fora). O falecido tinha a cútis de um defunto fresco. Tudo nele lembrava um cadáver sem as vicissitudes de um vivo. Seu corpo se quedava inerte e estático, silencioso e parado como se esperasse pelo milagre da ressurreição. Apesar do calor abafadiço, o sujeito se mantinha sem palavras. Mudo. Sem dar um pio... quieto, na sua, meio aperreado, deveras inconformado. Pensei por um segundo, que um gato lhe houvesse comigo a língua. 

Uma moça (digo uma mosca) impertinente, pousava a toda hora em suas mãos cruzadas em atitude de prece, segurando um terço na ponta do qual uma Cruz com a imagem de Jesus Cristo se fazia na derradeira lembrança que levaria para os confins da Terra. O inativo, sisudo e cordato, austero e circunspecto, não reclamava. Suava muito. E como! O líquido transpirante escorria por sua pele clara e ainda com os viços da idade meio que jovial. Vez em quando, a esposa prestimosa, deixava a minha amiga e calorosa e inconformada, para mostrar serviço, ou não se fazer alheia, chegava com uns lencinhos de papel e enxugava toda a fisionomia do adormecido. 

Obviamente para que o infeliz, de repente, não reclamasse do seu estado terminal. Ao me aproximar do féretro, percebi pelas feições do exânime, que não estava satisfeito. Algo o incomodava. Mesmo naquele estado crítico, entre a espera do derradeiro adeus sobre seu esquife, pairava, no ar, um mistério pesado. Um não sei que merda denso e inexplicável. Só não cheirava. Dei uma olhada básica como quem não quer nada (querendo tudo) para ver se capturava o problema que o deixava, não só sem vida, morto mesmo, desprovido do ar necessário para sobreviver. Em volta, alguns passos, as pessoas que ali se ajuntavam prestando as homenagens póstumas, seguiam tranquilas. 

Ladeando os restos mortais, amigos os mais diversos, os filhos, as esposas deles, os netos e até um recém-nascido viera prestigiar o avô que não tivera tempo de apreciar o sabor dos seus carinhos. De repente, um mancebo alto (lembrava o Terraço Itália, no centro de São Paulo), os cabelos loiros em total desalinho, os braços longos e queimados pelo sol, vestido, como diria -, sem muito apuro. A coisa fofa se esgueirava de um lado para outro, como uma serpente forasteira e atordoada, rabugenta e medrada por estar fora do seu habitat. Não se detinha em nenhum ponto determinado. Me belisquei: ‘aquí tem caroço no angu.’ Grudei as minhas orelhas -, perdão -, meus faróis de milhas nas suas movimentações. 

Não foram em vão as observações a ele dirigidas. Discretamente, o ‘Bem Chegado’ ou seria, o ‘Enfadado Bem Mal chegado,’ endereçava umas olhadelas básicas, mas decretórias e basilares para a viúva-fresquinha. A esposa do ‘de cujus,’ não teria mais que trinta anos, enquanto o que em menos de uma hora se fartaria comendo capim pela raiz sem tempero. Disse para meus botões: ‘esse sujeito deve ser o substituto que ocupará o lugar do que está dando o fora e não terá como voltar. A viúva ainda nem emparedou o ‘ex-marido’ e, pelo visto, já providenciou um novo ‘cobridor de bundinha’ para dormir de conchinha com o seu traseiro no silêncio das noites vindouras.’’’’ De fato, acertei na veia da questão.  

O impulsivo, em visitar Papai do Céu mais cedo, deitado confortavelmente num ataúde por sinal de primeira linha, por dentro, estava a ponto de estourar. Eram os cornos postos em sua cabeça. Por essa razão, ao olhar para ele, antevi os galhos. E, como ele, me senti traída. Me entristeci. O desditoso mesmo do outro lado da vida, sentia uma pontinha de inveja, de ciúme, ou talvez até de fúria. Deveria estar xingando a consorte:  ‘vagabunda, safada. Nem esperou eu baixar as cuecas -, quero dizer as carnes podres ao jazigo e já me arranjou um tapa-buraco... não, meu Deus -, um carcamano’! Cerimônia encerrada, a debandada se fez geral. Paramos, passos à frente, num superlotado restaurante contíguo ao Cemitério da Consolação e minha amiga me pagou um lanche. 

Extremamente curiosa enquanto saboreávamos a rápida refeição, resolvi chegada a hora de matar as minhas tresloucadas curiosidades:
— Suelen, me esclareça uma dúvida. Enquanto estávamos na capela, percebi um indivíduo alheio a tudo, porém abertamente filmando, com a sua impaciência de comilão, não só a você, como mais acentuadamente a cônjuge do viajante com passagem só de ida...
Minha amiga se abriu numa gargalhada gostosa e estrondosamente alta e mandou bala:
— Acaso, por coincidência, se refere ao loiro alto que acabou de entrar e se postou ali perto do caixa? Segui a indicação da amiga.

De fato, balancei a cabeça corroborando um ‘sim.’
— Ele mesmo!
— Carina, aquele ali é o Berredo. Tem um caso com a viúva, um enrosca pentelho, desde que o marido dela (que Deus o tenha) descobriu um câncer no reto. Seis anos se passaram a partir desse evento. Naturalmente, agora, os pombinhos (segundo ela me relatou ainda pouco) vão oficializar a união e juntar todas as sacanagens não feitas ou feitas debaixo de pressão, numa alcova de primeira lá para as bandas de Santa Catarina...
— Suelen, você me fala isso assim, na maior cara de pau? Não tem sentimento, ao menos respeito pelo cara, aliás, seu amigo que acabou de ser enterrado?!
— Ter, eu tenho... mas compreenda, Ca. A fila anda...

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 21-1-2024

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