quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Vamos ‘salvar’ grupos de media ou vamos sustentar vícios e luxos?

Elisabete Tavares

De um lado temos o Jornalismo e a Democracia. Do outro temos os grandes grupos de media, as suas parcerias comerciais e a constante propaganda política.

Hoje, fala-se muito em ‘ajudar’ os media e em usar dinheiro dos contribuintes para ‘apoiar’ o Jornalismo. E confunde-se Jornalismo com os atuais grandes grupos de media, como Global Media Group, Trust in News e Impresa.

Mas, desengane-se quem pense que financiar grupos de media é o mesmo que ‘salvar’ o Jornalismo e a Democracia.

Desengane-se quem pense que os grandes grupos de media são sempre sinônimo de Jornalismo, liberdade de expressão, de informação livre, plural e independente. (Basta constatar o facto de que teve de ser um órgão de comunicação social independente – o PÁGINA UM – a colocar ações em tribunal para obrigar entidades públicas e o próprio Governo a divulgarem informação que têm vindo ilegalmente a esconder dos portugueses).

A realidade nua e crua é que, em geral, nos grandes grupos de media as parcerias comerciais multiplicam-se e crescem, enquanto jornalistas são despedidos e as reportagens são cada vez mais uma ‘coisa’ rara. Não há dinheiro para investigar e viajar em reportagem, mas há para bons salários para diretores e administradores, carros topo de gama, cartões de crédito, almoços gourmet, avenças para comentadores amigos e para jornalistas que não incomodam o poder.

Muitos bons jornalistas – dos que incomodam – são colocados na prateleira ou ‘dispensados’. (Sei de alguns que, estando em funções, têm sido impedidos de publicar ‘cachas’ por serem temas que não agradam aos ‘patrocinadores’). Estagiários baratos ou grátis que não fazem perguntas e executam na perfeição a cópia de comunicados de imprensa são ‘promovidos’.

Pouco jornalismo se faz, hoje, nas redações cheias de jornalistas ocupados a fazer ‘corta e cola’ de ‘takes‘ da agência Lusa ou de comunicados do Governo ou de empresas. O churnalism é uma realidade que envenena as redações. As parcerias comerciais são a erva daninha semeada com a ajuda de diretores que é, hoje, impossível de arrancar.

A realidade nua e crua é que os grupos de media vivem para os seus ‘clientes’, que são as empresas, bancos e entidades públicas que lhes pagam para fazer conferências, summits, tertúlias, talks, entrevistas e podcasts. Promovem-se líderes empresariais, marcas, produtos, campanhas, tendências…

Mas vemos jornalistas a dizer que a crise nos media é um problema do ‘modelo de negócio’ e a culpa é da Internet e das redes sociais. Além disso, dizem que a culpa também é… dos leitores. Como se os jornalistas e os vícios dos grandes grupos de media não tivessem nada a ver com a crise no setor.

A antiga diretora do Público, Bárbara Reis, afirmou que “a elite portuguesa, incluindo médicos, professores e pessoas com boas reformas, desvaloriza a informação livre e independente”, referindo-se aos grupos de media. Ora, esta afirmação espelha bem a ‘bolha’ em que vive a maioria dos jornalistas que trabalha para os grandes grupos.

Aquilo que os “médicos, professores e pessoas com boas reformas” desvalorizam é a mistura de notícias com conteúdos pagos, a mistura de entrevistas com parcerias comerciais e os suplementos patrocinados até o tutano para vender peixe alheio. Aquilo que desvalorizam é noticiários que dedicam os primeiros trinta minutos a políticos. Ou a promoção descarada de empresas e partidos. Ou o ‘bajular’ em direto de certas personalidades.

A classe perdeu a noção da realidade, ao ponto de achar normal um congresso de jornalistas com mais de uma dúzia de patrocinadores, e em que jornalistas se ‘babam’ frente ao Presidente da República, num espetáculo desprestigiante e triste. 

O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no V Congresso dos Jornalistas. O evento, que foi patrocinado e 'apoiado' por mais de uma dúzia de entidades públicas e privadas, incluindo empresas e bancos, exigia o pagamento de entrada a jornalistas interessados apenas em cobrir o congresso, o qual teve ainda o 'Alto Patrocínio' da Presidência da República. Foto divulgada pelo Congresso dos Jornalistas/DR 

O pudor desapareceu por completo. A classe dá-se conta da gigantesca promiscuidade com o poder político e económico?

Há muito que os maiores grupos de media se divorciaram do público. Mas vivem naquela relação tóxica de ter pedido o divórcio, mas de quererem manter o público por perto. Não entendem por que motivo o público está a seguir em frente. Não entendem que o público se sente traído e partiu, sem olhar para trás.

“Não compro jornais há anos”. “Ver telejornais, para quê? É só políticos e propaganda”. As frases de desgosto e lamento sobre o estado dos media em Portugal multiplicam-se pelos fóruns e comentários na Internet e nas ruas. Falando com jovens, a realidade é similar: “Ver notícias? LOL”, é uma das respostas que recebo quando pergunto a um universitário se lê jornais.

Não tenho visto muitos jornalistas publicamente a colocar a mão na consciência e a admitir que nas suas redações se faz cada vez mais do que ‘não é jornalismo’ do que o que ‘é jornalismo’.

Aquilo que tenho visto é a hipocrisia atroz e patológica de se culpar apenas a Internet, as redes sociais e os problemas financeiros dos grupos de media pela grave crise que atinge o sector.

A verdade é que jornalistas têm ficado em silêncio sobre o que se passa nas redações. Já perdi a conta de jornalistas que me dizem que apoiam o trabalho do PÁGINA UM e que tudo vai mal nos grupos de media, incluindo a propaganda que fazem. Mas, depois, esses jornalistas fazem algo para acabar com isso? Confrontam a direção? Enfrentam os CEOs? Recusam executar parcerias comerciais (quando delas se apercebem)?

 A verdade é que o terrível corporativismo da classe ameaça ajudar a acabar com ela. Jornalistas infratores, que mantêm atividades incompatíveis com a profissão, seguem como se tudo fosse normal. Jornalistas a executar contratos comerciais – sobretudo diretores – prosseguem como se fosse tudo normal. Nas barbas da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e do Sindicato dos Jornalistas.

Em Portugal, esta é uma prática tóxica – todos se calam para não ‘parecer mal’. E assim, se ‘lixa’ toda uma classe e a credibilidade do setor.

Agora, os media e os jornalistas pedem dinheiro ao Estado e ajudas.

A surgirem ajudas dos contribuintes – seja através de um Carlos Moedas ou de um Ministério governamental – servirão para pagar baixos salários de estagiários e alguns jornalistas destacados para fazerem ‘copy-paste’ de ‘takes’ da Lusa e comunicados do Governo.

As ‘ajudas’ servirão também para pagar carros topo de gama de administradores e diretores, além das senhas de gasolina, despesas extra diversas, almoços, cartões de crédito, prémios anuais e os seus razoáveis salários.

As ‘ajudas’ servirão para pagar avenças de comentadores pagos a peso de ouro ‘porque sim’ – do amigo, ao amigo do político ‘amigo’ – enquanto o estagiário é ‘esfolado’.

As ‘ajudas’ servirão para financiar ‘vícios’ e formas de estar nos media que têm prejudicado a Democracia, o Jornalismo e beneficiado o poder político e económico (e ajudado alguns jornalistas, diretores e administradores a construir piscinas na casa de campo).

As ‘ajudas’ servirão para manter tudo como está, quando os leitores pedem mudança urgente nos media. As ‘ajudas’ servirão para tapar o buraco criado por negócios opacos e negociatas que correram mal.

Há jornalistas que sabem disto, que dizem isto à porta fechada. Está na altura de os jornalistas se deixarem de atirar culpas e olharem para o que se passa nas redacções e nos seus grupos.

Não é só na Global Media que há contas e negócios a escrutinar. E na Trust in News? E na Impresa? E os milhões devidos ao Estado, à Autoridade Tributária, à Segurança Social? Aos bancos?

Este cenário beneficia muito quem andar a ‘dar apoios’ ao Jornalismo. Sobretudo porque os apoios ajudam a que se faça ‘jornalismo’ apenas em algumas áreas que se quer. Esse condicionamento será a morte do Jornalismo.

Já hoje é visível a tendência de se fazer ‘jornalismo de investigação’ apenas em certos temas para os quais ‘se pode ir buscar dinheiro e bolsas’. Aliás, toda a indústria do chamado ‘fact-checking’ não passa disso mesmo, uma oportunidade para ‘ir buscar uns milhares ou milhões’. Depois, tem é de se escrever o que se sabe que se espera que seja escrito… ou seja, a ‘verdade’ é só a que sai de Governos, comunicados ‘oficiais’ e pouco mais… Como se isto tivesse qualquer semelhança com Jornalismo, cujo ADN consiste precisamente em questionar… as autoridades e os comunicados oficiais.

Agora, querem que se dê ‘apoios’?

Esta tese das ‘ajudas’ públicas aos grandes grupos de media, além de usar um argumento falso – ‘salvar o Jornalismo e a Democracia’ – só vai servir para alimentar o ‘monstro’ em que se tornou a interferência comercial e política no sector. Falso argumento porque existe muita imprensa para lá dos grandes grupos, incluindo imprensa regional e projetos de jornalismo independente, como o PÁGINA UM.

Esta tese de se vir a ‘ajudar’ os grandes grupos de media, faz-me lembrar o filme ‘O Exterminador Implacável’. A tese é de que se nada se fizer, ‘O Exterminador Implacável’ chegará para eliminar o ‘Jornalismo’. Acontece que no filme de culto protagonizado por Linda Hamilton e Arnold Schwarzenegger é precisamente na tentativa de se travar o aparecimento do ‘exterminador’ que se acaba por ativar a fatídica Skynet e libertar o poder da inteligência artificial, que lança uma guerra contra a Humanidade.

Na tentativa de se ‘salvar’ o ‘Jornalismo, ‘ajudando grandes grupos de media, arrisca-se a que seja activada uma outra ‘Skynet’, com os grupos de media, ainda mais dependentes de ajudas financeiras externas – públicas e privadas –, ainda mais vulneráveis e condicionados, unidos numa cruzada contra os ‘dissidentes’ que questionem o poder político e económico.

A ‘máquina’ dos media, financiada pela ‘máquina’ política e económica, seria aperfeiçoada para ‘eliminar’ todos o que ‘desobedecessem’ ao poder instalado e verdades ‘oficiais’, e a liberdade de imprensa e de expressão seriam apenas uma lembrança – tal como a Democracia.

Ajudar os grandes grupos de media, como eles são hoje – com toda a promiscuidade e dependência comercial de entidades públicas e privadas – é impedir a sua urgente limpeza, mudança e transformação.

Dificilmente, mantendo a atual promiscuidade com o poder político e económico e os atuais ‘vícios’ e salários e avenças de luxo, os grupos irão mudar. Pelo contrário, vão saber que, se quiserem sobreviver, têm de se ‘rebaixar’ mais.

Sem se fazer esta ‘limpeza’, não há ajudas que valham para os ‘salvar’. Mas, se calhar, é isso que se quer. Num mundo em que os media são controlados por políticos e grandes grupos económicos, tudo é mais fácil.

Num admirável mundo novo dos grupos de media financiados por ‘ajudas’, uma nova era nasceria em que a censura e o pensamento único seriam, em definitivo, a norma.

Tal como no filme ‘O Exterminador Implacável’, arriscamos caminhar a passos largos para esse mundo em que mais ‘jornalistas’ se ajoelham perante o poder, fazem vénias a entidades públicas e privadas – sejam de saúde, tecnológicas, financeiras ou militares -, beijam a mão do Presidente da República e agradecem as ‘ajudas’. As ‘ajudas’ que os ajudam a não mudar.

Título e Texto: Elisabete Tavares, jornalista, Página UM, 24-1-2024

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