domingo, 28 de janeiro de 2024

[As danações de Carina] Esperteza feminina acima de qualquer suspeita

Carina Bratt

OCORREU UM ACIDENTE em plena Avenida Rio Branco no cruzamento com a Presidente Vargas, praticamente às costas da Igreja da Candelária. Dois carros, um belo e estonteante Maserati Ghibli superesportivo vermelho bateu frontalmente com um Fiat Uno branco. Euzinha seguia à passos curtos da Praça Mauá e passava pelo local justo naquele instante. Não descreveria a coisa como uma anormalidade, particularmente, pela minha visão de como vi o desenrolar da coisa. Diria, tudo foi como um beijo meio que esquisito em face do barulho ensurdecedor provocado.
Num dos veículos (o Fiat Uno branco), se fazia ao volante um homem de uns trinta e cinco anos, vestido numa bermuda azul e uma camisa do Flamengo. Nos pés, um tênis de brechó. O outro (o Maserati), vinha guiado por uma mulher mais nova. Ao olhar para ela, não daria mais que vinte anos. Em face da circunstância fortuita, ou não programada por vontade própria (repetindo, pelo menos na minha visão), ambos os automotores ficaram completamente em pandarecos. Todavia, quem mais padeceu, sem dúvida alguma, o Fiat.

Os condutores, graças ao bom Deus, nada sofreram. A primeira a sair de dentro do seu luxuoso confortável, mostrando um belo par de pernas roliças, foi a mulher. Estava descalça. A dondoca não se fazia furiosa, nem demonstrava sinais de que vomitaria uma série de impropérios. Com toda calma, sorriu brejeira e observou ao rapaz que pilotava a outra condução:
— Boa tarde, meu querido. Interessante! O prezado é um homem simpático, bem-apessoado e eu, uma mulher atraente e polida. Nossos carros, como pode perceber, ficaram totalmente desmilinguidos. Apesar do acontecido, nós não tivemos nenhum arranhão. Nada considerado sério. Tampouco precisaremos ir parar num pronto socorro para procedimentos urgentes –, ou um curioso, ao nosso redor (em face de uma colmeia de celulares filmando), carecer de acionar uma ambulância do SAMU.

Olhou ao redor, contemplou a plateia que se acotovelava e prosseguiu:
— Acredito, amável cavalheiro, só pode ser um sinal vindo lá do alto, chegado até nos como um recado sutil. Um aviso claro, sinalizando que tudo o que nesse cruzamento acabou de acontecer foi uma coisa vinda dos desígnios de Jesus Cristo, ou como queira, mandada pelo Pai Maior.
— Como assim, moça? Não estou entendendo – disse o homem ao tempo em que saia com muita dificuldade, pelo que restou da janela do seu enlatado:
— Foi obra divina, não termos morrido. Viva a vida!
— Ah, isso lá é verdade, moça. Concordo plenamente com a senhorita.
A jovem seguiu em frente:
— Ponha reparo num outro milagre. Um segundo prodígio. Esta garrafa de vinho que estava em meu banco do carona, e que acabei de sacar, não se quebrou. Nem um arranhão sofreu a danada. Perceba, a bicha está intacta. No mínimo, o destino benfazejo quer que bebamos seu conteúdo para celebrarmos nossas vidas milagrosamente salvas em face desse quase ‘trágico acidente’ do qual saímos ilesos.

Num gesto de carinho incontido, a beldade passou a garrafa que estava no banco do carona e a ofereceu ao rapaz. Ele, mais que depressa e sem imprimir muita dificuldade, a abriu. Ato contínuo, virou o gargalo na boca, tomando um longo gole do seu conteúdo. O líquido, sem dúvida alguma, estonteante. O melhor. O sujeito nunca havia sorvido uma bebida tão saborosa como aquela em toda a sua existência. Antes de devolver a botelha à maravilhosa plantada à sua beira, entornou mais um trago, dessa vez mais vagarosamente. Partiu para uma terceira e quarta dose e então, satisfeito, a devolveu ao pedaço de gata esplendorosa que, numa simples ‘de visu,’ considerou uma deusa grega.

A maviosa pegou o recipiente e pediu carinhosamente que lhe fosse restituída a rolha. De posse, dela, num gesto maquinal, a ninfeta a recolocou imediatamente de onde o mancebo a havia sacado, obviamente, sem beber um tiquinho assim que fosse. Não entendendo aquele gesto, o garanhão inquiriu, curioso:
— Ei, minha princesa. Depois de tudo o que me disse, e da forma como relatou nosso ‘acidente,’ não vai beber nenhum golinho? Ao menos para comemorarmos a gentileza de estarmos respirando?
— Não.
— Posso saber o motivo?
— Está óbvio.

O infeliz insistiu, ainda sem a ficha ter caído:
— Sequer uma ‘bicadinha’ para celebrarmos o milagre de sairmos dos braços de uma quase infelicidade íntegros e totalmente resguardados?
— Já disse, meu amigo que não.
— Por tudo o que é mais sagrado! Qual o motivo da sua recusa? Acaso não foi com a minha fachada? Já sei: não engoliu com bons olhos, os cornos do meu humilde carrinho...

A espirituosa e inimitável, sem imprimir mais delongas ao seu colega de colisão em duas conhecidíssimas vias públicas situadas no centro do Rio de Janeiro, partiu então, desfechando a cartada final:
— Meu querido, meu fofinho. Acho eu que tudo por aqui está bem claro.
— Ok, ok. Vou pedir encarecidamente a sua atenção máxima e pedir que explique, em poucas, palavras, o que talvez pelo susto, estou deixando de ver. Por qual motivo não quis me acompanhar consumindo dois ou três golinhos dessa preciosa poção que está totalmente ao alcance do seu paladar?
— Vou esperar a polícia chegar primeiro.

Título e Texto: Carina Bratt, de Curitiba, no Paraná, 28-1-2024

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