domingo, 7 de janeiro de 2024

[As danações de Carina] Obsessões silenciosas

Carina Bratt

ACORDEI ASSIM. Meio amalucada da cabeça. As ideias embaralhadas. Corri à varanda. Ainda estava no lugar. Minha rede cochilava. Me aproximei do peitoril. Parecia mais baixo ou eu havia aumentado de tamanho, ou crescido alguns centímetros em altura. Espiei lá para baixo. A avenida não arredara. Carros se arrastavam enquanto aguardavam o semáforo. Os prédios em frente, dormindo à sono solto. Os moradores, ao contrário, atarefados com seus afazeres e horários. Mirei para a esquerda e me deparei com o Cristo Redentor. Continuava no topo da base, firme e forte, os braços abertos, recepcionando a Cidade Maravilhosa. Não sei como não se cansa daquela posição. Engraçado que numa dessas noites (dias atrás), acordei sobressaltada e, ao atentar para onde ele fica, percebi que não se fazia presente. 


O topo do Corcovado todo iluminado, mas nada do Cristo. Liguei para a Carminha, uma amiga (as três da manhã) e ela me tranquilizou:
— Ca, ele às vezes dá uma fugidinha para fazer as suas necessidades fisiológicas. Coisa de uns quinze dias encontrei com a sua figura impecável na Barata Ribeiro. Tomei um susto. Fingi, todavia, que não o havia reconhecido...
— E Ele falou com você?
— Ele... ele quem?!
— O Cristo!
— Ah, sim. Me deu um bom dia, querida e amada filha e foi só.

Em mudez pensativa, quase como em transe naquele meu silencio remoto, ainda na torpeza do ‘meio acordada,’ ‘meio dormindo,’ abri os braços e me espreguicei. Lembrei que tinha uma cozinha espaçosa em casa e para lá me dirigi. ‘Vou passar um café, comer umas bisnaguinhas fofinhas com queijo e manteiga, que adoro, amo de paixão e depois me preparo para a rotina.’ Na curta viagem até a beira do fogão, estanquei na reta do banheiro. ‘Um banho refrescante e bem gelado, vai me tirar dessa pachorra fleumática.’ Não precisei me desfazer de nada, vez que só ando de calcinha e lingerie. Depois do ‘pipi,’ pulei para o box. Abri a torneira. A todo volume. Uau! O chuveiro me acolheu pressuroso, com uma gargalhada espalhafatosa (coisa de chuveiro) e, num dado momento, me senti como uma embarcação afogueada chegando ao ancoradouro.

Saio debaixo da minha ‘chuvinha particular’ quinze minutos depois e sigo borrifando, piso afora, como uma torneira acometida com um entupimento medonho e o nariz destilando gotejos. Me sinto flutuando no espaço do apê deixando rastros à retaguarda. Os cabelos em charcos e completamente em desalinho, os pisantes sorridentes em contato direto com os azulejos. Nada de toalha, menos ainda de pano de chão ou rodo para enxugar a água que se forma em pequenas gotículas como se fossem centenas de ilhas brancas, quase imperceptíveis num mar de gelo. Essas frescuras de madames de fuças empinadas não fazem parada, ou seja, não se criam em minha concepção de dona de casa. Instantes depois, mesa posta, embarco no meu dejejum.

Consulto o celular, leio as mensagens, respondo uma e outra. Terminada a primeira refeição, a próxima parada é o meu quarto. Me enxugo, me visto, me penteio, coloco as frescuras que fazem uma mulher ficar linda e maravilhosa usando uma dezena de maquiagens. Por último, as roupas para o enfrentamento do dia. Tenho encontro com o Apa (que não atende o telefone, já liguei trocentas vezes). Antes de deixar a sala e dar bom dia ao silencioso corredor, olho longamente para os quadros que tenho sobre o piano. De um lado, papai (abraçado com a mamãe) e, de outro, euzinha com o rostinho sapeca aos cinco anos em uma foto elegante, em meio aos dois. Frenteado à bancada do piano, em canto discreto, um oratório. Espaço projetado que mandei construir logo que me mudei.

Impreterivelmente o uso para reflexões. Nele, uma imagem quase em tamanho normal de Nossa Senhora Aparecida, e, quase de mãos dadas, outra de Jesus Cristo. Faço o sinal da cruz, rezo um Pai Nosso e agradeço por estar viva e com saúde. Igualmente homenageio ao Altíssimo pelo ar que respiro. Peço proteção para meus amigos, invoco a Paz Eterna para meu pai, vida longa para mamãe e finalmente, ao invés de requerer um amontoado de bobeiras e besteiras para mim mesma, evoco ao Deus Poderoso que me dê sabedoria. Como concedeu à Salomão. SABEDORIA. Em seguida ganho o corredor, me enfurno no elevador e viajo sorridente e matreira, até o loft do Apa. Ele, ao som da campainha, me abre a porta sorrindo, me abraça, me beija, me acarinha o rosto, e eu me extasio. Viajo. Me transporto para o além desse momento mágico ao ver a sua fisionomia se esvaindo numa ternura ‘embriagadoramente’ alucinada e infinda.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 7-1-2024

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