terça-feira, 30 de janeiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] A incrível sobrevivência diária de um aborto vivo

Aparecido Raimundo de Souza 

ELA TEM APENAS TREZE ANOS. É uma criança. No sentido látego da palavra, uma garotinha sem eira nem beira. Não passa, juridicamente falando, de um ser despreparado para a vida adulta, infortúnio penoso que a sua mãe lhe empurrou goela abaixo sem que lhe consultasse se tinha vontade de ser e de viver como uma comandada, tal como uma abécula conduzida como marionete entrelaçada por fios e cordéis invisíveis aos olhos da sociedade. De concepção ainda em formação, a angelical se distancia da circularidade do seu agora e se flagra, forçada a suportar uma trajetória adulta, infecunda, tipo uma estéril repetição de um fuzuê infindável, como se tivesse o tino de botar ordem no galinheiro. 

Ao descomedimento das rugosidades que enfrenta, mal e porcamente sabe precisar onde fica a ponta do seu nariz. Na verdade, a cândida sequer alimenta a ideia de se defender a si mesma, e, tampouco, tem noção do que é possuir um nariz e qual a função dele além de estar grudado em seu rosto. Semelhada a uma dócil virginal, desfralda às vicissitudes de não poder ser uma mocinha como seria do seu agrado.  Vive seu rosário desfraldando a sua puerícia, se passando por adestrada embutida num quadro esquizofrênico somente para ingleses verem. Em tempo real, se faria urgente fugir da estéril repetição que lhe corrói. Ter seu tempo livre dentro de um “espaço-laser” onde pudesse ruminar seus próprios sonhos e viver o seu “hoje” como melhor lhe desse na telha. 

Mesmo norte, onde no sabor da fogosidade que lhe mantém respirando, gozasse, sem esbodegos, dos prazeres imaculados de evoluir numa ambição sucessiva de novos horizontes à espera do alcance das suas demasias em excessos de saciedade, pelo menos a ponto de se ver desarticulada e tivesse o comando de seus atos, sem claro, se vestir nas preocupações degradantes de uma dona de casa com todas as obrigações inerentes de uma mulher casada, nelas compreendidas as arrumações  cotidianas de uma esposa, mãe e babá, algemadas às afazerancias e aos encargos das lavagens de banheiros, ordenações dos quartos, salas e varadas  e ainda, o mais penoso: cuidar, em tempo desembaraçado, do café, de colocar a mesa do almoço, de preparar as mamadeiras... 

Em sequência, trocar as fraldas de um guri sapecamente frenético e intransigente e ainda, de sobremesa, deixar em plena ordem as louças do almoço e do jantar. Aos treze anos, a casta não poderia se ver encarcerada nas correntes de uma roda infame precisando, praticamente à toque de caixa, se conformar em cuidar de dois irmãos menores, verdadeiros capetinhas endiabrados que não sabem fazer outra coisa a não ser criarem turbulências em graus elevadíssimos. Sem mencionar, mas já o fazendo, em desconfortos medonhos que ultrapassam o bom senso do desassossego, usque as fomentações das desinquietações e efervescimentos que, sem sombra e dúvidas, nem Lúcifer levaria à termo tal empreitada, caso essas disparidades lhe fossem destinadas. ” 

Pelo menos ao sabor de uma brandura, ou de um regalo facetado, podendo estar o Tinhoso enfiando o seu tridente na cutucação dos traseiros dos incautos que chegam a toda hora em seu território “escaldantemente fumegoso.” Se a tais quadros a ela impostos, lhe fossem dadas outras intercorrências -, e, em via paralela -, a essas disparidades estivesse no comando uma criatura normal, ou dito de forma mais objetiva, capitaneada por uma doméstica de idade mais elevada, certamente teria (ainda que levando em conta a centralização, o discernimento, a paciência e o sossego), sérios problemas de ordem psicológicas. No entanto, o que vejo é essa pobre criaturinha de treze anos tendo em seus costados, o peso de uma carga imensa para ser suportada pelo albor da sua idade. 

A mãe, de concepção tacanha (se é que poderia ser chamada de mãe), tem uma vida igualmente descontrolada. Sai cedo. Chega à noite. Aporta cansada, e às vezes nem janta ou toma um simples café. Cai incontinente na cama e apaga. Vive algemada aquela teoria de que é “facilis descensus Averno” (1) e se sente na obrigação errônea de almejar que a sua sacrificada filha siga os seus idênticos passos se olvidando de pensar no futuro que a menor está deixando de construir para que amanhã (ao se fazer real a sua ausência, seja por doença ou morte), a moça sobreviva numa associação de pessoas que sejam mais generosas e benevolentes.     

A casa, seja de manhã, à tarde, à noite, sábado, domingo feriado, continua mergulhada numa imundície desesperadora, cujo final lógico (ainda que agarrada numa limpeza em regra) não prevalece. A donzel, em face dessas desventuras, tem problemas de saúde. Se corta, se vitupera, só se dirige às crianças aos berros. Em tempo nenhum cultiva a serenidade, a calma a urbanidade. É bipolar e para variar, não se decidiu se larga (ainda que por um minuto) o celular e tenta fazer alguma coisa (levando em conta que não tem escapatória), ou se toma um de seus remédios controlados e sai do ar. 

A deslumbrante tem problemas sérios. Às quartas feiras é levada pelo avô ao psicólogo, onde outras crianças da idade dela se reúnem para uma terapia de grupo. Uma espécie de hospício brando em começo de carreira. Na realidade, o que se vê, o que se vislumbra por lá, não vai além de um ajuntamento tresloucado, um acotovelamento que se pudesse ser trocado por merda, valeria mais um pedaço de papel sanitário empapado em sangue de menstruação.

 Completando a balbúrdia, os profissionais que dizem trabalhar, formam um bando de imbecis de carteirinha. Não oferecem um serviço que possa ser chamado ou tachado de “Sério.” A coisa toda funciona como um paliativo “destemporarizado ou destransferido.” De aproveitável, escapa um almoço para os grupos onde as pobres almas aflitas se deleitam com uma caixinha de suco (os sabores mais variados) se ampliando, tal bufê aos responsáveis pelos “doentes” ou “enfermos” em busca de um tratamento adequado. 

Entre mortos e feridos, toda a população presente (meninos querendo ser meninas -, meninas travestidas de meninos) se vê admitida numa espécie de encontrão coletivo. Um ajuntamento de mongóis e debilóides (onde outros menores com problemas mais delicados, como vícios, relações amorosas, pressões escolares, esquizofrenia, autismo, falta de amigos, isolamento social, falta de disposição para qualquer trivialidade do dia a dia, seguido de bullyings, abuso dos pais com as próprias filhas, tentativas de homicídio contra membros da família e suicídios, entre outras mazelas). 

Esses pequenos seres de luz, nessas barafundas, saem pior do que quando ali chegaram em busca de socorro. Um SOS fragmentado, um grito de socorro divorciado de eco, sem mencionar os pais de cada uma dessas inocentes que reclamam de um “serviço” falho, tendo em vista que as prefeituras não estão nem aí para as consequências futuras. Os prefeitos e outras autoridades ligadas à área da saúde e os próprios Conselhos Tutelares (verdadeiros cabides de empregos) de cada cidade onde essas espeluncas travestidas de instituições em favor dos menores funcionam, sequer dão as caras. Apenas tomam brilho e cores variadas, em épocas eleitoreiras. 

Nessas enchanças, cada pilantra, cada verme peçonhento na disputa acirrada das urnas faz coisas que até Deus duvida. Tudo para transpor a “porta de acesso” e continuar mamando num carguinho público baseado em patamares de salários robustos, não esquecendo, de contrapeso, as luzes dos holofotes voltadas para os umbigos de cada um. Os ladrões do poder não querem desapegar da mamata. Lutam esses ratos peçonhentos, de unhas impecáveis, vendem o rabo, penhoram a alma, se prostituem à custa dos humildes e despojados da sorte. São os chacais, que chafurdam nas bonanças e nos fiascos dos manietados aos esgares da pobreza. 

Lembrando, protagonistas que passam por cima como tratores descontrolados massacrando os desvalidos que a cada dia aumentam assustadoramente em todo os recantos desse Brasil sem lei. Enquanto o mundo gira e a banda toca, a nossa pobre vítima do alto dos seus treze anos, segue despedaçada. Visto pela ótica de uma dinâmica real, a sua estrada é pontilhada por achaques e enfermidades oriundos da própria mãe, que lhe rouba, a cada hora do dia, o direito líquido e certo de viver o melhor pedaço da sua vida: a infância. Sem defesa, sem saída, a pobrezinha está à mercê de uma indigna desalmada que faz dela uma peça que caiu em desuso. 

Mesmo trilho, constrói uma existência que se esvai ainda nos primeiros passos e se embrenha numa caverna imensa e sem nenhuma possibilidade de volta. Destituído de explicações plausíveis de mérito, o troço se mostra soberbo, como se alguém, de fora, olhasse demoradamente para um triângulo escaleno com seus lados iguais e, num dado momento dessa observação, descobrisse que a área da circunferência quadrada da pirâmide posta à sua frente é literalmente o encontro de um raio caído do céu com um outro possivelmente desviado por aquele filho de uma égua que o direcionou para um ermo inexistente, ou seja, para uma terceira zona que definitivamente o mandou sem querer, ou sem perceber, para  a  puta que pariu. 

Nota de rodapé:
1 - Facilis descensus Averno – é fácil descer até o inferno.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Curitiba, no Paraná, 30-1-2024 

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