terça-feira, 16 de janeiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Ardida como pimenta

Aparecido Raimundo de Souza

MICHELE, NESSA MANHÃ
, bonita e ensolarada de começo de domingo acorda furiosa. Por conta disso sobe pela parede de azulejos da cozinha com as tamancas cor de rosa. Está fula da vida. O marido deixou o café ferver e derramou parte dele sobre a trempe do fogão com resvalo para um dos queimadores. A moça detesta café fervido e ainda mais espalhado por uma das duas principais bocas do limpíssimo e bem cuidado doméstico que ganhara do pai. Para variar, o companheiro também se descuidara dos pães na frigideira. Torraram a ponto de ficarem irreconhecíveis:
— Imbecil... incompetente... como fui me casar com você?

A dondoca parece, de fato, uma fera enjaulada. Possessa, enfezada e revoltada, anda de um lado para outro soltando chamas fumegantes pelas narinas, ao tempo em que despeja facúndias à bel prazer da uma turbulência interior meio que despropositada:
— Quando é que a sua falta de cérebro vai deixar de fazer de você um Zé Mané? Seu burro. Você parece um energúmeno desqualificado até para trocar carícias com uma jumenta!
E o Zé Mané, coitado, burro, energúmeno desqualificado batizado pelo pai, no cartório como Secundino (todo mundo no bairro onde morava confundia Secundino com Segundino) e só esse pequeno deslize o fazia ficar brabo, indignado e agastado pouco faltando para perder as estribeiras do senso do limite e explodir.

O desditoso, apesar de constantemente pisoteado e rebaixado pela linda e encantadora mulher com quem se casou, tenta de todas as maneiras agradar a abespinhada e espavorida:
— Calma, querida. Não se irrite.
— Como não me irritar? Você faz uma besteira atrás da outra. Nem dá tempo para a gente digerir a primeira merda e sem intervalo engata uma segunda! Se ao menos desse um espaço maior entre uma cagada e outra...
Michele sacode os cabelos e sem perca de tempo, continua fustigando os brios de seu companheiro:
— Onde já se viu limpar os cantos das unhas encravadas dos pés com a ajuda da tampa de uma caneta esferográfica? Sem mencionar o que me deixou pê da vida. Em cima do lençol limpinho que troquei assim que pulamos da cama!

— Desculpe querida. Não farei de novo...
— Desculpe os cambaus. Droga...!
De banho tomado, o consorte, só de cueca, usa nos pés um par de havaianas brancas e meias furadas, ambas nos fundilhos dos calcanhares. No braço, ostenta um relógio discreto (comprado em lojinha de R$ 1.99) que ganhou de seu falecido pai no dia do aniversário:
— Droga, Secundino. Você não tira esse relógio do pulso nem para tomar banho?
— É a prova de água, querida.
— Pare de me chamar de querida.

— Mas você é a minha querida... o meu amor... a minha fêmea preferida...
— Pois não sou mais. Trate de dar uma geral caprichada no fogão que você fez o favor de cagar todinho...
— Não se preocupe, minha joia rara. Limparei num segundo.
— Faça o serviço direito. O pano com a bucha e o detergente estão embaixo da pia.
A poderosa coloca as mãos nas cadeiras e segue agressiva e hostil:
— Quando abrir a torneira, não deixe a água pingar no chão. Odeio piso molhado. Sem levar em conta que posso escorregar, tomar um tombo, quebrar um braço, torcer o pé... ou coisa pior...

Secundino, sem perder o senso alegre e descontraído, se mantém cada vez mais galanteador:
— Alguma outra ordem, meu anjo adorado?
— Depois que fizer tudo o que mandei, se meta de novo em outro banho. Você acabou de sair do box, mas continua com cheiro de cachorro molhado.
— De cachorro molhado?
— Isso mesmo. Desses vira-latas sarnentos bem vagabundos. Vamos, se apresse. Daqui a pouco mamãe deve chegar por aqui e eu não quero ver nada fora do seu devido lugar. Menos ainda que a minha velha pegue você assim, pelado.

— Não estou pelado...
— Está sim senhor. Essa cueca e nada... não discuta comigo. Lembra que ela tem a chave da porta da sala...
— Tudo bem, tudo bem. Concordo com o que você está me dizendo.
Num ímpeto enérgico e ao mesmo tempo afetuoso, Secundino abre os braços e enlaça o corpo da esposa ao seu. Profere sem deixar de sorrir de modo faceiro meia dúzia de besteiras enquanto a beija. Michele, inteira, treme, a respiração sai do normal:
— Agora, por favor, antes que eu faça todas as tarefas pedidas, e entre para o desfrute de uma nova chuvinha particular, me conceda um pedido. Olhe para a nossa mesa. Vamos, minha deusa. Tira essa calcinha e fica de quatro. Adoro você de quatro! Venha, minha gostosa. Você, nessa manhã já me enrolou demais... depressa, de quatro...

Em contínuo, Secundino se livra também da sua indecente e minúscula cueca:
— Olha para mim. Espia como a sua encenação de esposa sofredora e autoritária me deixa, quando se finge de nervosa... hoje a sua atuação superou os outros dias. Tenho certeza que daria uma excelente atriz.
Michele, se desmancha num sorriso maroto e se faz submissa. Sem mais delongas, abaixa a pecinha de nylon. Chuta, a dita, para um canto e se encaixa na bancada na posição solicitada. Aliás, a consagrada e a mais requisitada pelo seu homem. É nessa hora que ela se espanta e emite um gritinho de felicidade ao dar com o tamanho descomunal da espingarda do seu cônjuge:
— Secundino... Secundino, cuidado. Vai com calma. Espera, aí... ui... oh...! Ufa!... de... devagar... Ave Maria... amor... da última vez quase desmaiei.

Toma fôlego, e continua:
— A propósito, Secundino, me conta... onde foi que você me arranjou essa áspide tão desproposital?!
Secundino, não cabendo em si de contentamento parte para o ataque. Sussurra no escutador de novelas da estupenda cachopa palavras melosas, enquanto a castiga como se tivesse saído de uma abstinência prolongada:
— Qual delas, minha Cleópatra?
Sem que ninguém esperasse por aquela situação inusitada e vexatória, humilhante e despropositada, invade cozinha adentro, a mãe de Michele:
A velhota arregala um horror em face da cena com a qual se depara:
— Minha filha, não tinha um lugar mais reservado para pôr em prática as indecências dessas putarias que acabo de flagrar vocês dois?!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 16-1-2024

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