Aparecido Raimundo de Souza
LOLITA DA CUCA FRESCA entra
na loja exatamente no intervalo do seu almoço. Tinha uma hora para engolir a
marmita e voltar às pressas para o serviço. Trabalhava na faxina de uma empresa
de telefonia e o serviço não poderia, de forma alguma, lerdear. Por seu turno,
não se arrimavam, em seus planos, perder tempo. A duração dele, em seu relógio,
se fazia preciosa e austera. Com esse
pensamento deixou o almoço para depois e saiu em busca do que demandava levar à
termo. Naquele dia, impreterivelmente apertado, e em face da rapidez estonteante
com a qual os ponteiros fustigavam os segundos (deixando os à beira de um
ataque inesperado), a qualquer momento a coisa toda poderia se degringolar, e,
o pior de tudo, se fazer fatal.
A hora de mandar a “boia” para o vazio da barriga se consubstanciava no
único espaço que lhe permitia dar um giro em busca do pretendido. Como
trabalhava próximo à várias lojas de comércio, concluiu, se fosse à passos
ligeiros, voltaria em tempo, não de engolir o almoço. Simplesmente para comprar
o que carecia dar de recordação para uma pessoinha muito especial em sua vida.
Com essa fixação borbulhando o seu afogadilho, submergiu as batidas do coração
em várias lojas. Todas, por azar, superlotadas. Na que lhe pareceu ser a mais
cômoda e com poucos personagens em ebulição, se dirigiu à área masculina a
varejar uma prenda que encantasse a quem homenagearia.
Escolheu uma camisa elegante e dentro do orçamento que saldaria sem
atropelos. O “mimo” se destinava a seu pai, que completaria noventa e cinco
anos. O longevo, apesar da idade, se fazia esperto. Todos finais de semana
passava a mão na sua esposa e a levava para um clube próximo de onde moravam.
Ali bebiam refrigerantes, comiam algumas besteiras, dançavam até não aguentarem
mais, e, em seguida, retornavam para o aconchego do lar. Dona Palmira, sua mãe,
como nos anos anteriores, anunciou que faria uma festinha surpresa para seu
companheiro de quase setenta anos.
Lolita da Cuca Fresca jamais chegaria de mãos abanando, tendo em conta
que apesar de pobre e humilde, seu pai sempre se fizera benemerente e
magnânimo. Construíra casas espaçosas nos fundos do quintal imenso, onde,
aliás, mais dois irmãos com suas respetivas famílias, dividiam o espaço, cada
um no seu próprio quadrado, obviamente, agrupados ao lado dos autores de suas
vidas. Presente comprado, Lolita da Cuca Fresca se encalçou em busca de uma
caixa que fosse rápida. Havia um público proceloso entrelaçado em filas
quilométricas. Foi aí que deu de sorte com uma pequena. Nela, três pessoas.
Olhou para o relógio de pulso. Daria tempo, se a coisa fluísse ligeira.
Correu e embicou na traseira de um rapazola vestido com uma camisa do
Flamengo. Na frente dele, uma moça toda de preto. À boca do guichê, um distinto
de costas lembrava Jason Statham. A funcionária, naquele momento, se fazia
estressada com um monte de papeis nas mãos (possivelmente carnês). Apesar
disso, manejava tudo com destreza. Todavia, um fato estranho ocorria sem
explicação. O sujeito que encabeçava a “bola da vez”, ou seja, o assemelhado ao
“infiltrado Jason”, não saia do lugar. Igualmente a moça toda de preto e o
sujeito com a camisa do seu time predileto. Lolita da Cuca Fresca resmungou com
seus botões: “Essa lesma do recebimento, apesar rápida, parece uma tartaruga
empacada.”
Cinco minutos quase, e nada de deslanche. “Meu Deus! Preciso voltar.” Ao
seu cangote, uma senhora com uma menina de uns treze anos, ambas grudadas em
seus respectivos celulares, espreitavam pela chegada da vez. E o tempo se
esvaia. Nas outras caixas, modo igual, se aglomeravam mais pagantes. A demanda,
entretanto, fluía. Golfava sem delongas. Lolita da Cuca Fresca, ao oposto, se
remexia presa a um incômodo cada vez mais enervante. Dez minutos e nada. A sua
carreira de seres viventes, parecia morta. Mais dez minutos e teria que
abandonar o presente e correr para o trabalho. A senhora, atrás dela,
indignada, deu sinais de vida. Grunhiu: “Final de ano, natal e virada de 2024
às portas, gente saindo pelo ladrão, um monte de caixas, e as esperas não
evoluem.”
Lolita da Cuca Fresca sorriu para a criatura e informou: “Estou em horário de serviço e tudo indica, não serei recepcionada. Esperarei mais cinco minutos... se a droga continuar desse jeito, engasgada, vou me embora sem o que vim fazer aqui.” Os cinco minutos voaram e nada. Nesse instante, um segurança se aproximou. Risadinha marota no rosto cheio de espinhas. Antes que falasse alguma coisa, Lolita da Cuca Fresca tomou a dianteira e reclamou:
— Moço, estou em horário de almoço. Vim comprar um presente para meu pai. Entrei nessa espelunca e a droga da molengona do caixa parece não ter pressa...
Ajuntando as palavras, se desfigurou numa feição de poucos amigos e continuou:
— Vou ter que ir embora sem levar o que adquiri para dar a meu velho. Essa senhora aqui, como pode perceber, se faz deveras aperreada...
O segurança se abriu numa fala que lembrava o som de uma taquara rachada:
— Senhorita, pelo que presumo, acredito não tenha prestado a devida atenção.
Lolita da Cuca Fresca, o rosto ainda mais enfurecido, se abrasou:
— No que não “prestei a devida atenção,” cavalheiro?
— No rapaz a sua frente.
— Reparei sim. O que tem ele?
Refez a indagação à senhora com a adolescente no celular. A mulher olhou compridamente para o rapaz e concluiu:
— Um espécime normal... meio paradão, mas hoje em dia...
O segurança, em resposta, e rindo de ambas as compradoras, mandou bala:
— Senhoras, o rapaz vestido com a camisa do Flamengo... e os demais...
A senhora desviou os olhos do celular e se adiantou:
— Fala logo, moço. O que está acontecendo com o flamenguista? Acaso se prostrou arrependido? Quer mudar de time?
Lolita da Cuca Fresca engrossou o papo. Observou, braba:
— A engraçadinha do caixa, Deus que me perdoe, parece não ter mais ninguém para atender...
O segurança, sem deixar de manter a fuça debochada:
— Essas “pessoas”, não são “pessoas”, sé é que me entendem, caríssimas senhoras...
As duas cercam o segurança e indagam a uma só voz:
— O que o senhor quer nos dizer com essa conversa de que os que estão a nossa frente “não são pessoas”?
O Segurança insiste fazendo charme numa repetição odiosa:
— Essas “pessoas” como mencionei, não são “pessoas”. Olhem com atenção...
O fardado se afasta alguns passos e, aos gargalhos estridentes, como se fosse um mongoloide, obstina:
— Por favor, olhem com atenção. Só peço isso: botem reparo com atenção...
— Diabos, moço. Estamos fazendo isso... fala, por Deus. O que esses três aqui ao nosso lado são?
O subalterno desfere a pancada final. Se retira, precipitado, chacoteando aos esgoelos:
— Manequins.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 5-1-2024
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