terça-feira, 26 de dezembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Decisão de abordagem

Aparecido Raimundo de Souza

AS DUAS AMIGAS,
Maria Ofélia e Lupércia tomam café e conversam no hall da recepção da empresa onde ambas trabalham, uma ao lado da outra.
Maria Ofélia:
— Venha cá, amiga Lupércia, me esclareça uma dúvida. O Manolo é realmente filho de dona Emengarda?
Lupércia:
— Sim, Maira Ofélia. Por quê?
Maria Ofélia:
— Porque ele é tão diferente...
Lupércia:
— Qual o conceito de diferente para você?
Maria Ofélia:
— Tudo.
Lupércia:
— Tudo não é resposta.
Maria Ofélia:
— Ora pombas. Pafúncio, o irmão dele, é gordo feito uma porca a caminho de virar torresmo. Tem o rosto cheio e os olhos muito vivos. Já o Manolo é magro, seco feito um pau de furar tripa...
Lupércia:
— Pau de furar tripa?

Maria Ofélia:
— É. Pau de furar tripa, Lupércia. Você não sabe o que é um pau de furar tripa? Faça-me graça. Deixa, antes concluir meu pensamento. Depois explico o que é um pau de furar tripa. Terminando com o biótipo do Manolo: cabeludo igual o Pafúncio... quanto a isso não há a menor dúvida. Olhar sério e penetrante. Num quadro geral, os traços dos dois, pouco ou quase nada, dizem ou esclarecem a respeito da consanguinidade vinda do mesmo berço. Todavia, o Manolo, como disse e repito, parece um varapau desmamado antes do tempo previsto. Sem contar que o infeliz fuma um cigarro após outro e soube que vivia às tapas sem beijos com a antiga namorada, a nossa também amiga Sinhá Perereca do RH pelos corredores aqui do escritório...
Lupércia:
— Todo mundo briga, Maria Ofélia. Por que eles seriam a regra?

Maria Ofélia:
— Você quer dizer, a exceção?
Lupércia:
— Deu para entender? Então, pelo amor de Deus, não sacrifica.
Maria Ofélia:
— Concordo que todo mundo tem lá as suas rusgas. Porém, leve em conta, o Manolo, dizem, passava dos limites.
Lupércia:
— Tudo bem. Contudo, isso não é motivo para crucificar o pobre do Manolo.
Maria Ofélia:
— Não estou crucificando ninguém. Apenas não atino com o “xis” da questão.
Lupércia:
— Que “xis” da questão, mulher?
Maria Ofélia:
— O Manolo. Fico com a garganta entalada...

Lupércia:
— O que você não consegue desentalar?
Maria Ofélia:
— Os modos, as maneiras, o comportamento, o jeito de andar, de olhar, de interceptar as pessoas.
Lupércia:
— Maria Ofélia, pelo amor de Deus. Isso não é motivo para você perder uma noite de sono e deixar de gozar a plenitude da vida.
Maria Ofélia:
— E quem foi que disse que perco, Lupércia? Saiba que durmo feito um anjo. Quanto a gozar a vida... ela nada tem a reclamar de mim...
Lupércia:
— Vejo um monte de interrogações em seus olhos...
Maria Ofélia:
— E diga lá: não é para ter?

Lupércia:
— Não vejo motivo. A não ser que exista algo mais sério que eu desconheça...
Maria Ofélia:
— O que está insinuando?
Lupércia:
— Eu? Nada.
Maria Ofélia:
— Como, nada?
Lupércia:
— Percebo que você ficou vermelha como um tomate fujão.
Maria Ofélia:
— Eu, vermelha? E o que é tomate fujão para você?
Lupércia:
— Aquele tomate adolescente que acha que sabe tudo, que pode tudo, vive no celular... não respeita os mais velhos...
Maria Ofélia:
— A que ponto chegamos. Você me comparando a um tomate sem modos, ou pior, a um legume baderneiro...
Lupércia:
— Brincadeirinha. Eu me referi ao tomate em face da blusa que você está usando hoje. Sempre vejo você de azul...
Maria Ofélia:
— Engraçadinha!
Lupércia:
— E digo de passagem, sem medo de errar. O vermelho lhe deixa mais esperta e ladina...

Maria Ofélia:
— Pelo que entendi, está me chamando de burra quando não estou de vermelho?
Lupércia:
— Não mude o rumo da conversa. Eu tenho plena consciência que não lhe chamei de burra.
Maria Ofélia:
— Ora, se você é esperta... para quem sabe ler, um pingo é letra...
Lupércia:
— Você se considera uma mulher burra?
Maria Ofélia:
— Claro que não!
Lupércia:
— Então assunto encerrado.
Maria Ofélia:
— Mas lá no fundo me diga: pareço burra?
Lupércia:
— Tire isso da cabeça. Vamos voltar ao Manolo.

Maria Ofélia:
— Tudo bem. Diga lá, o que você acha do cara?
Lupércia:
— Normal.
Maria Ofélia:
— Só isso?
Lupércia:
— Que mais você quer que eu diga?
Maria Ofélia:
— Tudo...
Lupércia:
— Sei que você tem uma quedinha por ele...
Maria Ofélia:
— Eu?
Lupércia:
— É a conversa que escuto aí pelos corredores...
Maria Ofélia:
— Não diga! É mesmo? Que mais andam fofocando pelos cantos?

Lupércia:
— Que você já saiu com ele.
Maria Ofélia:
— Credo em cruz!
Lupércia:
— Viram vocês entrando em um motel.
Maria Ofélia:
— Eu e o Manolo? Entrando em um motel?
Lupércia:
— Não importa. É verdade?
Maria Ofélia:
— Sim. Confesso. É verdade.
Lupércia:
— Amiga, estou pasma! Você teve coragem de ir para a cama com o desgraçado? De ficar com aquele verme? A Sinhá Perereca, coitada, tomou porrada. E muita. Chegou a desmaiar. Precisou ser socorrida...
Maria Ofélia:
— Não fui para a cama com ele. Ele é quem foi comigo. E quer saber de um detalhe? Chegue o ouvido aqui perto.

Lupércia:
— Fale de uma vez...
Maria Ofélia:
— O gostosão tem uma baita de uma espingarda...
Lupércia (aos risos):
— É?!
Maria Ofélia (seria):
— Muito grande. Parece uma tromba de elefante desembestada. Já viu uma tromba de elefante em estado de graça?
Lupércia:
— Nunca vi. Nem quero. Mas então? Rolou mesmo?
Maria Ofélia:
— Rolou. Só que não dei nada do que você está pensando para ele...
Lupércia:
— Não? Mas se você acabou de falar que o Manolo tem uma ferramenta, perdão, uma espingarda... digo, uma tromba...

Maria Ofélia:
— Sim, disse e confirmo. Só estou sinalizando que não abri a caverna onde a corda do sino da igrejinha é puxada para soar estrepitosa.
Lupércia:
— Desenhe...
Maria Ofélia:
— Com a arma engatilhada que papai do céu presenteou a Amazônia esplendorosa existente no meio da mata virgem que cerca o território proibido... amiga, eu diria foi ele quem literalmente me fez ver estrelas fora de controle normal, ou seja, aquele ponto “G,” por onde toda a comunidade consegue escutar, em bom som, o chamamento para o começo da missa...
Lupércia (gargalhando, desta feita, com vontade descomedida):
— E você ouviu o tal “chamamento” e... rezou?
Maria Ofélia (se fechando numa fisionomia furiosa):
— Não, amiga, me limitei a não repetir o erro da Sinhá Perereca. Só ajoelhei...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 26-12-2023 

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