Na última edição do ano, esta coluna, que voltará em janeiro, reafirma o compromisso com a democracia como um fim — e não como meio de afirmação ideológica
Nuno Vasconcellos
Para se ter uma ideia de como 2023 foi rico em surpresas e repleto de emoções, basta lembrar que o ano começou com a perplexidade diante das manifestações do dia 8 de janeiro, em Brasília, e terminou sob impacto do atentado covarde praticado pelos terroristas do Hamas, no dia 7 de outubro, que arrastou Israel para uma guerra que já se estende por mais de dois meses e parece não ter data para terminar. Isso sem falar na chegada do “libertário” — e, até segunda ordem, “ultraliberal” — Javier Milei ao poder na Argentina e na ideia absurda do ditador da Venezuela Nicolás Maduro de grilar mais da metade do território de sua vizinha Guiana.
No Brasil, as notícias mais
recentes foram a aprovação pelo Senado do nome do ministro da Justiça Flávio
Dino para o Supremo Federal e a aprovação em primeiro turno, na sexta-feira
passada, do projeto de Reforma Tributária do governo. Ou seja, o Poder Legislativo
sempre surpreende pela capacidade de nunca surpreender. Nos temas que realmente
interessam, por mais que a oposição ponha um obstáculo aqui e outro acolá, o
Congresso sempre acaba dizendo sim à vontade do Planalto.
Ao longo de 2023, esta coluna reagiu a todos os fatos relevantes, sempre deixando claro que suas posições foram orientadas pelos valores democráticos. Aqui, é necessário mencionar um ponto importante. No Brasil e no mundo, muita gente se apresenta como democrata, mas, na prática, defende ideias e posturas que chegam a ser opostas à desse regime. Entre nós, há muitos militantes de partidos que gostariam de fazer como fizeram os “bolivarianos” da Venezuela, que se valeram das regras da democracia como um meio de alcançar o poder e, uma vez lá, submeteram o povo a uma ditadura abjeta e cruel. Essa postura é condenável, tanto em governos de esquerda quanto de direita!
Os princípios democráticos não
podem — ao contrário do que aconteceu, além da Venezuela, em países como a
Nicarágua, a Turquia e a Rússia — servir de trampolim para ambições
totalitárias. Para esta coluna, a democracia é um fim em si mesma. É o estágio
mais evoluído a que uma sociedade pode chegar para proporcionar a todos os que
participam dela o direito de se manifestar com o objetivo de alcançar o estado
de bem-estar, que deve ser perseguido por todas as cidadãs e todos os cidadãos.
Esses princípios começam pelo
Estado de Direito e passam pelo regime partidário e pelo sistema eleitoral com
direitos e deveres bem definidos. Eles incluem valores como a justiça social, a
tolerância, a participação e a transparência. É em nome deles que esta coluna
chega a ser intransigente, por exemplo, na defesa de uma Reforma Administrativa
que reduza os benefícios concedidos à elite do funcionalismo público e adote
medidas que levem a um corte substancial das despesas de custeio da máquina
pública.
Dessa maneira, o dinheiro que
hoje vai parar nos bolsos não de todos os servidores públicos, mas do grupo
mais privilegiado de pessoas que estão dentro da máquina do Estado, deverá ser
destinado a investimentos que, além de gerar milhares e milhares de postos de
trabalho, ajudarão a melhorar a competitividade da economia nacional e a
reduzir a quilométrica distância social que separa os mais ricos dos mais
pobres no Brasil.
AUMENTO DAS OPORTUNIDADES
— Esse ponto de vista foi defendido pela coluna em diversas vezes ao longo do
ano. No mês de fevereiro, por exemplo, em função da tragédia que provocou mais
de 40 mortes e deixou milhares de famílias sem teto no litoral de São Paulo,
como muitas vezes aconteceu no estado do Rio de Janeiro, a coluna criticou a
inércia do Estado diante da ocupação irregular de áreas em encostas sempre
expostas ao risco de deslizamentos.
Era e continua sendo urgente
encontrar uma solução para esse problema! Do contrário, nos restará apenas
expressar nossa indignação com a perda de vidas a cada ano e esperar que a
tragédia se repita no verão seguinte. A solução esperada não pode se resumir,
como já aconteceu no passado, a tirar as pessoas de suas casas e degredá-las em
espaços que não ofereçam condições dignas de moradia. Essas condições incluem,
além de um teto seguro, acesso ao mercado de trabalho, serviços de transporte
de boa qualidade, boas condições de segurança, escolas capazes de proporcionar
boa educação e equipamentos de cultura e lazer.
A coluna sempre defendeu a
melhoria das condições de vida e o aumento das oportunidades de educação e
trabalho para os moradores das comunidades do Rio. Também defendeu que parte
substancial dessa política deve estar voltada para o aumento da segurança nas
comunidades e o combate sistemático à violência que mantém a parte mais
vulnerável da população da cidade e do estado sob perigo constante.
Como já foi dito aqui mais de
uma vez, nada justifica que os agentes do Estado, no cumprimento de seu dever
de combater o crime, exponham a população a riscos maiores do que aqueles que
já fazem parte de sua rotina. A polícia não tem o direito de entrar nas
comunidades esculachando quem encontrar pela frente.
Da mesma forma, e na mesma
proporção, é inaceitável que a polícia seja impedida de realizar seu trabalho
por decisões que, a pretexto de resguardar a segurança da sociedade, se prestam
apenas a servir como uma espécie de salvo conduto que mantém a bandidagem fora
do alcance da lei. Isso, da mesma forma, não pode acontecer.
Em abril deste ano, a polícia
do Rio foi criticada, inclusive pela ministra da Igualdade Racial Marielle
Franco, por ter perseguido e prendido bandidos que se refugiaram no Ciep Elis
Regina, na comunidade da Maré. Em nenhum momento Sua Excelência mencionou que
os malfeitores estavam armados até os dentes com armas de guerra. Nem que eles
pertenciam à organização narcoterrorista Comando Vermelho e que, no horário da
ação policial, não havia um único estudante ou professor na escola.
Bandido tem que ser tratado
como bandido. Toda vez que alguém toma para si o direito de se valer do uso da
força — que, nas democracias, é uma prerrogativa do Estado — em benefício
próprio, as instituições precisam reagir em nome de sua autopreservação. Isso
inclui a identificação e localização dos suspeitos, sua detenção e julgamento
com amplo direito de defesa e, em caso de condenação, o cumprimento da pena
aplicada pela Justiça. Por mais óbvias que sejam, essas diretrizes precisam ser
repetidas quantas vezes for necessário — até para não perdermos de vista que a
mesma democracia que tem a liberdade como um de seus principais valores, prevê
a supressão da liberdade para os que quebram suas regras.
Quando bandidos assassinaram
de forme brutal e covarde três médicos que bebiam cerveja em um quiosque na
Barra da Tijuca, em outubro passado, a coluna exigiu a apuração das
responsabilidades e a punição dos bandidos que praticaram a barbaridade com o
devido rigor da lei. A lei deve valer para todos e já passou da hora de o
Estado agir de forma rigorosa contra a bandidagem inclemente, que muitas vezes
está incrustrada na máquina pública e não demonstra o menor receio na hora de
extorquir a população que, na maioria das vezes, não tem a quem pedir socorro.
FASCISTAS E ANTIDEMOCRATAS
— Da mesma forma, em diversos momentos foi feita aqui a defesa do fim do
açodamento político que, nos últimos anos, foi capaz de reduzir qualquer tema
em discussão a uma extensão da briga entre esquerda e direita que tem dominado
o debate nas últimas eleições realizadas no país. É preciso que haja uma
distensão imediata e, nesse caso, o primeiro passo deve caber ao partido do
governo, nunca à oposição.
Demonstrações de grandeza e
gestos de generosidade em relação aos adversários podem até não constar do
repertório das alas mais radicais dos partidos de esquerda que apoiam o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas fariam um bem enorme à popularidade de
um governante que chegou ao poder por uma margem mínima de votos em relação a
seu adversário nas eleições do ano passado. A divisão do país não faz do atual
governo de Lula um sucesso instantâneo de público e de crítica — como aconteceu
em seus dois mandatos anteriores. E ele tem todo o direito de tomar
providências no sentido de aumentar a governabilidade.
Em nome da distensão que
considera necessária, a coluna defendeu que o presidente, num gesto de
grandeza, anistiasse os manifestantes de 8 de janeiro — sobretudo àqueles que,
pela trajetória de vida, não tivessem um perfil que combinasse com o de manifestantes
de direita capazes de articular um golpe de Estado. A ideia da anistia, claro,
não passa pela cabeça de quem tem interesse em levar esse cabo de guerra
adiante. Para as pessoas a que consideram vantajoso se impor pela força sobre
seus adversários, não existe hipótese de perdão para as senhoras e os senhores
que preferiam Jair Bolsonaro e protestavam contra a volta de Lula à
presidência.
Acima de qualquer preferência
pessoal e de qualquer avaliação sobre as virtudes e os defeitos de Lula e de
Bolsonaro, atitudes como essa precisam ser vistas com cuidado — ainda mais
quando partem de militantes para quem a democracia só é boa quando seu lado
está no poder. Para eles, é legítimo aplicar o rigor da lei em benefício de
suas próprias ideias. Basta, porém, que o povo escolha representantes da outra
corrente para governá-lo para que eles se coloquem como vítimas de fascistas e
antidemocratas e passem a por em dúvida a legitimidade do governo.
Excessos no direito de
manifestação não combinam com a democracia e precisam, sem sombra de dúvida,
ser punidos na forma da lei. Quem invadiu e, comprovadamente, depredou as sedes
dos Poderes da República precisa, sim, pagar pelo que fez. Muitos dos manifestantes
de 8 de janeiro já foram julgados pelo Supremo Tribunal e condenados sem
direito a recurso a penas de 14 a 17 anos de prisão.
PANFLETOS PELA IMPUNIDADE
— É um tema para reflexão. Na semana passada, o 3º Tribunal do Juri do Rio,
depois de uma série de chicanas por parte dos advogados de defesa e de
adiamentos por parte do sistema de Justiça, finalmente deu seu veredito para
caso dos militantes de esquerda que, no dia 6 de fevereiro de 2014 — há quase
dez anos, portanto — dispararam contra os jornalistas que cobriam o evento o
rojão que atingiu e matou o cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Andrade.
No dia do julgamento, alguns
militantes simpáticos à causa dos “acusados” distribuíram na porta do tribunal
panfletos defendendo que Caio Silva de Souza e Fábio Raposo Barbosa ficassem
impunes, como se sua opção política os liberasse de prestar contas pela morte
do jornalista. Ao final de 12 horas, o júri se pronunciou. Caio, que acendeu o
estopim e direcionou o rojão aos jornalistas, foi condenado por lesão corporal
seguida de morte.
A sentença foi de 12 anos em
regime “inicialmente” fechado. Como cabe recurso, o “militante” voltou para
casa livre, leve e solto e continuará respondendo em liberdade pela morte de
Santiago. Já Fábio, “apenas” manteve o rojão sob sua guarda até entregá-lo ao
companheiro Caio. O júri, nesse caso, não viu no porte da arma letal que tirou
a vida de Santiago razão suficiente para condenar o “ativista” — que poderá
voltar às ruas e carregar os rojões que desejar, independentemente do dano que
eles possam causar se alguém se dispuser a acendê-los.
Sem entrar no mérito do
processo nem atribuir qualquer erro à decisão da Corte, ficam claros os pesos e
medidas diferentes em relação aos militantes de direita e a aos ativistas de
esquerda julgados por suas manifestações. Sem considerar, mais uma vez, os
detalhes que justificaram cada uma das decisões, a impressão que fica quando se
coloca um caso ao lado do outro em nada contribui para reforçar a imagem de
isenção que deve haver em relação à Justiça. Para uns, pelo que se defende,
todo rigor é pouco. Para os outros, qualquer punição é considerada injusta e
qualquer rigor, visto como excessivo.
Não se trata, é evidente, de
defender uma situação inversa na avaliação de casos como esses. O país só
avançará no dia em que o conceito de igualdade — que é parte integrante da
visão de democracia — for aplicado ao pé-da-letra. E no dia em que as avaliações
das circunstâncias que inspiram as decisões das autoridades não forem
contaminadas por suas ideologias pessoais.
Atenção! Ideologia, claro, é
importante para orientar o cidadão na hora de votar e escolher um governo que
proponha programas nesta ou naquela direção. Sendo assim, é justo e razoável
que as políticas públicas propostas pelas diferentes administrações expressem
as preferências ideológicas dos governantes escolhidos pelo povo. O
inaceitável, porém, é que pessoas como a ex-candidata à presidência da
República Simone Tebet (MDB) e muitos outros construam sua carreira dizendo
cobras e lagartos de Lula e, na primeira oportunidade, pulem para dentro do
governo e jurem fidelidade a quem foi alvo de tantas críticas.
O que não pode, da mesma
forma, é se valer da ideologia como critério de avaliação dos erros e acertos
do governo. Muitos militantes da direita defendem as políticas adotadas pela
administração passada apenas porque foram tomadas por Bolsonaro. Da mesma forma,
militantes da esquerda aplaudem qualquer medida do atual governo, sem avaliar
suas consequências, apenas porque foram tomadas. É preciso avaliar as possíveis
consequências de cada medida antes de aplaudir ou de vaiar a decisão.
Desde que assumiu, Lula tomou
uma série de decisões acertadas — sobretudo aquelas que destravaram os
investimentos e deram ao país a oportunidade de voltar a crescer. Em outros
campos, porém — como no da política externa — ele foi incapaz de cometer um acerto.
Desde janeiro deste ano, o Itamaraty, que deveria se manter fiel à tradição
diplomática do “pragmatismo responsável”, tem se guiado pela simpatia
ideológica a ditaduras de esquerda, como o Irã e a Venezuela. Essa postura pode
causar danos à imagem e aos negócios internacionais do país — como a coluna
defendeu em diversos momentos.
Não fica bem para o país
democrático usar sua posição no mundo para defender ditaduras ou posições que
atentem contra os princípios da democracia. O apoio ao direito legítimo do povo
palestino a seu próprio Estado não justifica a defesa, ainda que velada, dos
terroristas do Hamas, que promoveram o ataque terrorista covarde, cruel,
inclemente e desumano contra Israel. Desde o início dos conflitos, esta coluna
fez da guerra no Oriente Médio seu assunto mais frequente. Das oito colunas
publicadas a partir da semana seguinte ao atentado, que aconteceu num sábado,
seis falaram da guerra e assumiram claramente o direito de Israel, na condição
de agredido, responder à altura.
Não precisou muito tempo,
porém, para que as pessoas contrárias a Israel passassem a considerar a reação
violenta demais e exigisse o fim imediato das hostilidades. Para essas pessoas,
os estupros que os terroristas cometeram contra mulheres diante de seus
próprios filhos, a degola de inocentes, as crianças que tiveram seus corpinhos
transpassados por lâminas, os bebês colocados vivos nos fornos dos fogões e
deixados lá até ficarem calcinados, a captura de reféns que descansavam em casa
quando foram surpreendidos pelo ataque terrorista, nada disso tem importância
diante das mortes de civis que os terroristas usam como escudos.
Para esta coluna, os
princípios da democracia são universais e as regras de convivência feitas com
base no que elas pregam não podem se restringir à defesa de posições que
agradam apenas a um dos lados envolvidos no processo. Nesse caso, o que vale
para o Brasil também vale para Israel, para a Argentina e até mesmo para a
Venezuela — de onde a democracia foi extirpada por obra de um governo que,
em sua trajetória de atrocidades, já recebeu até condenações internacionais por
suas ligações com o narcoterrorismo.
Procurar entender as causas e
consequências de cada um dos eventos mencionados neste texto, aceitar as
diferenças de pontos de vista e defender os direitos de pessoas que não pensam
como nós é uma obrigação de qualquer democrata. É com base nesse princípio que
esta coluna tem se guiado e continuará se guiando no futuro.
Aproveito a oportunidade para
desejar a todos um feliz Natal e um Ano Novo repleto de conquistas e de
reflexões sobre os valores que nos guiam. Esta coluna será interrompida no
próximo domingo e voltará a ser publicada a partir da edição de 14 de janeiro
de 2024.
Título e Texto: Nuno
Vasconcellos, O Dia, 17-12-2023
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