terça-feira, 19 de dezembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] A fossa do acetábulo

Aparecido Raimundo de Souza

“O que escrevo é apenas parte do que sinto, a outra parte finjo que minto e acredito.”
Lau Siqueira.

EUSTÁQUIO NÃO ESQUENTAVA a alcova por muito tempo em companhia de um rabo de saia. Podia ser loira, morena, bonita, feia, burra ou catedrática licenciada em qualquer área superior existente. Nenhuma se encaixava nos princípios básicos que regem a união estável entre dois seres normais. Fosse esquisito, ou mal-ajambrado, até se arranjaria uma desculpa esfarrapada, mas nada. O cara fazia parte desses homens de corpo sarado, físico de atleta, trinta e cinco anos bem distribuídos, além de ostentar o posto de pequeno empresário bem-sucedido. Administrava, com sucesso, uma rede de oito padarias, com lojas fartamente equipadas e movimentadas. Possuía, na garagem dois carros importados, um apartamento em Copacabana, na Avenida Atlântica, de frente para o mar e um sítio em Volta Redonda, às margens da Via Dutra, recanto afastado do burburinho da capital onde costumava passar os domingos e feriados com amigos e parentes.

Na verdade, para Eustáquio, o destino sempre se mostrou extremamente generoso, propiciando posição de vanguarda com ascendência inimitável, status social sólido, dinheiro à beça nos bolsos para gastar e mulheres, muitas mulheres. Contudo, não conseguia estabelecer um padrão de vínculo afetivo e duradouro com elas. Contava a décima segunda e tudo indicava, a cerimônia do rompimento logo se faria avizinhar. Claro que o fim, desta vez, seria diferente dos onze casos passados. Chegaria, como chegou, ao fim da linha, de maneira espantosa e inesperada. Contudo, não teria a menor graça partir logo para o desfecho da história, sem primeiro narrar um pouco do sufoco pelo qual passou nosso herói antes de encontrar verdadeiramente o amor da sua vida, ou seja, a Rayanne, pivô de toda a sua luta de glórias, da força de vontade e do desejo de viver e de ser feliz, pelo menos um pouquinho.

Tudo começou com a Eliane. Arranjou, com essa mineirinha de Juiz de Fora, dois garotos: o Luiz Cláudio e o Edmundo. Meses após o nascimento dos herdeiros, Eustáquio se viu abandonado. Eliane simplesmente sumiu na poeira. Veio a Paula. Eustáquio viajou na maionese. Pensou tivesse achado a sua tampa de panela. Usou uma estratégia diferente com essa. A endrômina própria das cobras e serpentes: deu o bote. Carimbou os passaportes de quatro coisinhas fofas, com direito a passearem, de graça, no bico da cegonha. Priscila, Maria Antônia, Roberto Carlos e Iasmim. Parou aí. Com a terceira, objetivando não se privar da postura de procriador real, e escudado numa simbologia de êxtases fertilizadores, furou o couro como um Davi a lançar por Terra o gigante Golias. Rosa Luíza conseguiu acorrentar o coração do afortunado lhe presenteando, num “beau geste,” trigêmeos. Passado um tempo, Rosa Luíza (tal como Paula e Eliane), juntou as tralhas e também bateu em retirada.

Surgiu, em cena, a quarta. Seduzida pela magia dos palavreados e poesias copiadas dos livros de Fernando Pessoa e Mário Quintana, Tatiana não deixou a peteca cair. Trouxe à luz um casal de pimpolhos espertos e sapecas à vera-efígie do pai. Manteve a lareira acesa, com muita lenha queimando, por seguidos janeiros. Depois, escafedeu na fumaça, sem deixar rastros. De armas e bagagens, Regina, a quinta, aportou radiante no pedaço. Novinha e sobressaindo às anteriores, Eustáquio, perto dela, sentia a alma revestida na plumagem de um adolescente com toda a energia e robustez dessa idade. Não fez feio. Na hora do roça-roça das partes salientes, caprichou. Dessa expedição ao monte proibido, nasceu Carmenzinda, uma menininha encantadora como bonequinha de vitrine. Mas nem esse anjo angelical serviu de suporte para segurar Regina. Mãe e filha ultrapassaram, numa certa manhã chuvosa, a linha divisória do portão com destino à farmácia e de lá tomaram um táxi para o desconhecido.

O mesmo desfecho se repetiu com a Mônica, Solange, Rafaela, Joana, Lurdes e Catarina. Eustáquio não deixava as “esposas” se estabilizarem no cargo. Longe dizer, negasse servir aos instintos bestiais oriundos dos prazeres da fornicação. A propósito, esses impulsos saltavam de seu âmago como lobos famintos sobre cordeiros indefesos. Mas então, por que esses enlaces “relâmpagos” misteriosamente retrogradavam sem explicações plausíveis? Que segredo havia por detrás da personalidade desse cidadão comum e aparentemente pacato? O que lhe impedia acertar na complicadíssima loteria de Eros? Igual ao bater de uma varinha de condão, de repente, se apagavam os spots e a vida tranquila do infeliz guinava trezentos e sessenta graus. Ele ia e voltava ao mesmo lugar, como se carregasse uma praga de mãe. Sua escassa felicidade afundava numa escuridão brutalizada. Com a rapidez de um relâmpago, Eustáquio pintava, a tiracolo, rebocando um par de pernas diferentes. Dia seguinte, a criatura virava poeira.

Aliás, todas as encrencas de Eustáquio criavam asas enormes e voavam como pássaros retirantes emigrando sabe Deus para onde. Tempos adiante, reapareciam como levantadas das cinzas. Aí jogavam o desafortunado nas malhas da justiça com a finalidade de cobrarem pensões não pagas pugnando, cada uma a seu tempo, por indenizações milionárias por serviços prestados pela metade. Corriam boatos os mais atemorizantes e cabeludos. Eustáquio possuía, no meio das pernas, uma armadura medonha, como uma terceira perna de um tripé além do tamanho mínimo necessário. Dela fluía uma espécie de bálsamo leitoso entremeado entre tufos de gritos e esgares que ecoavam à submissão de escancararem as portas por mais aldravadas que pudessem parecer. Parecia -, apregoavam as línguas ferinas, um jumento. Como tal, assombrava as donzelas incautas, pretendidas a se entregarem aos deleites dos gáudios carnais. Sequioso por sexo, a criatura não se contentava com uma, tampouco com duas. Dava conta de três, ou mais. Desrespeitava via outra, os redutores eletrônicos do “proibido ultrapassar,” mesmo quando as dondocas lhe acenavam às caçapas trancafiadas, os famosos “lacinhos vermelhos.” No contrafluxo, cascavéis de péssimo humor estardalhaçavam: em Eustáquio amargava a figura doentia de um safardana da pior qualidade.

Um cara nojento que gostava de transar à força, obrigando as pseudobeatas a promoverem o sadomasoquismo, introduzindo, via anal, cabos de martelos e vassouras, recipientes de xampus e objetos adquiridos em casas especializadas na venda de produtos eróticos. Afinal, em trânsito por toda essa celeuma, o que acontecia de alienígena em sua vida, que não o deixava se aquietar nem com preta nem com branca, gorda ou magra? Por quais motivos os troca-trocas intermináveis? À vista dessas futricas e fofocas, alhadas e garabulhas, se não havia nada de errado com a melhor parte de identificação de seu corpo, o que o transformava num joguete nas mãos femininas? Tantas candongas em ebulição, as hipóteses mais cabeludas lamuriavam acaloradamente, porém, logo em seguida, minguavam por não ter quem desse a elas sólido apadrinhamento. Quadra salientar, nessa celeuma de fios e nós, somente uma peça importante revelava o mapa sistêmico da situação: Eustáquio, “malgré tout,” não carregava, entre as pernas um negócio descomunal.

Em igual trilhar, não cultivava o prolixo, ao contrário, abundantemente prolífero, como ele, até difícil encontrar um espécime dando sopa. Jamais forçara as jovens com quem tivera algum tipo de caso a coabitarem, senão por vontade consciente e longe do pensamento estimular prazeres através de sofrimentos alheios. A panorâmica do ponto nevrálgico surgia à fragilidade de um inesperado ronco turbinado ocupando todos os cantos da casa. Dava medo escutar. Tudo reinava em clima de serenidade até o instante de colocar o esqueleto na horizontal. Desse modo, quando pintava a cama quentinha, num simples fechar de olhos, engatava no sono. Desse ponto, danava a produzir um som estrepitoso como se chacoalhasse desordenadamente a boca. Dito de outra forma: o apito se afigurava tão pavoroso e diruptivo, que espantava até o capeta, se por ventura despontasse dos porões do inferno comendo mariola e bebendo cachaça com enxofre. A bem disso, não havia rabo de saia que tolerasse, a graus de submissão, dividir pratos e talheres, enrabichado com um casca-grossa escroto, assemelhado a um desses caminhões betoneiras remoendo concreto para prédios em construção. Ainda mais na hora de tirar uma pestana.

Empurrões, beliscões e travesseiros duros não davam jeito. De bruços, de barriga para cima, de lado, de conchinha, não predominavam meios termos. Coisa alguma estancava o regougar cavernoso. A respiração estertorosa, como um pedido de socorro vindo do interior mais profundo, soava intermitente. Sobressaia às paredes do quarto, perturbava, amolava, atopetava o saco. Grosso modo: tirava o tesão da mais espirituosa das gazelas, como se alguém jogasse, inesperadamente, um balde de água fria. Sem saída e, diante dessas questões com as viragos, decidiu procurar um especialista em perturbações e sequelas do sono. Descobriu, após uma bateria de exames, que sofria de apneia, ou seja, algo que agia descontinuando a respiração enquanto viajava nos braços de Morfeu. Daí o ressonar estrondeante vindo à baila. Segundo o clínico, o tal entrave, além do brado esquisito, poderia ocasionar um acidente vascular cerebral. Uma cefaleia matutina, arritmias noturnas, entre outros eventos desagradáveis. Igualmente causar um enfarto ou provocar um derrame e fazer o sujeito bater a caçoleta de um minuto para outro.

O doutor mostrou ao Eustáquio uma revista médica com uma reportagem completa sobre o distúrbio que aterrorizava mais de quinze milhões de brasileiros. Claro, ele estava no meio dessa gente toda. Daí não dar certo com a mulherada. Tudo ia bem. Ancorasse inopinadamente à calamidade do azarado fuzarqueando, o amor acabava. Triste, frustrado, melancólico e, não obstante, com um medo danado de pular dessa para a terra dos comedores de capim pela raiz, Eustáquio se viu perdido no entroncamento da longa estrada de sua vida, aonde o caminho que vinha seguindo, desde a infância, se abria em duas estradas de destinos incertos. E agora, qual seguir? Não poderia abrandar ou enfraquecer. Sua melhor fase ainda estava por sobrevir. Com o positivismo à flor da pele e o coração batendo acelerado, partiu para a luta, sem esmorecer. Comprou apartamento zero quilômetro, mudou da Tijuca para Copacabana e se enrodilhou com a Rayanne, uma rapariga (a décima segunda da sua lista) bastante poposuda, quase adolescente, saída da esteira dos dezessete.

A beldade, recém-contratada da nova leva de moças que apareceu para preencher a vaga de caixa em uma de suas padarias, se tornou a bola da vez. Lembrava, a primorosa Paula Picarelli, aquela atriz que fez sucesso no papel da primeira mulher homossexual na pele da Rafaela, em “Mulheres Apaixonadas,” da Rede Globo. Para evitar atritos com a noviça, Eustáquio decidiu que precisava o mais urgente possível se ver liberto da doença. Envolvido nessa intenção, ligou para um amigo. O amigo lhe indicou uma mãe-de-santo “porreta.” Ela jogava cartas, tarô, runas, pedras, buraco, vinte e um, víspora e palitinhos. Além dessa função, também dulcificava a “vidência” e a numerologia. Dona Valquíria da Bahia de Todos os Santos. A soteropolitana pontificava, sem modéstia, “que qualquer do povo, com suas prescrições e aconselhamentos, alcançava a vitória.” Chegada a pouco, de Salvador, fazia e desfazia mandingas de macumbaria, bruxaria e feitiçaria. Trazia a pessoa amada de onde estivesse.

Resolvia questiúnculas de saúde, negócio, inveja, dinheiro, impotência, vícios, nervosismo e estresse. Diante dessa logística, Eustáquio se sentiu refrigerado. Seus conflitos logo estariam solucionados. Marcou com a dona que se escondia em Mangaratiba, subúrbio bem longe do centro do Rio de Janeiro. O guia que baixava no pedaço, principiou por fazer o Eustáquio montar num jegue durante doze quartas-feiras, completamente pelado e bebendo urina de moça virgem com mel. O jegue pertencia à macumbeira, que o alugava a R$ 200 reais por sessão. O mesmo acontecia com o mijo que brotava das entranhas de filha. A baiana jurava, de pés juntos, que a sua aborígene seguia imaculada por dentro e por fora. Pelo sim, pelo não, o precioso líquido excrementício e “raríssimo,” retirado do reservatório da inquestionável diva, o Eustáquio desembolsava R$ 400 reais por garrafada. Pintou uma sequência de sete sábados, onde comia cocô de recém-nascido com cerveja, tendo nas mãos, uma imagem do Senhor do Bonfim virado de cabeça para baixo.

Devido as constantes correrias para levar à termo esses trabalhos, Eustáquio ficava com a mente completamente em frangalhos. Nos dias e horários combinados, largava os afazeres, pegava o carro e se precipitava para a casa da espertalhona. Gastava duas horas para chegar. No regresso, a mesma rotina, além do tempo que perdia executando as simpatias impostas. Quase cinco meses e meio nessa lengalenga. A boa samaritana, na verdade, engordava os fundos do colchão. Tocava o “puxadinho” do barraco que, segundo seu mentor, conhecido por “Pai Vence Demanda de Obapracá” seria para expandir o centro espírita e, dessa forma, atender com mais comodidade a leva de necessitados que a cada começo de semana, proliferava em número cada vez maior. E o ronronar que é bom, nada de estancar. Por derradeiro, surgiu em cena a história do caixão. Eustáquio se deitaria num ataúde com folhas de Alecrim, Arruda e Comigo Ninguém Pode, ao tempo em que rezaria meia dúzia de Pai Nossos às avessas.

Esse ritual teria, impreterivelmente que ser levado à cabo, numa sexta-feira à meia noite em ponto. A sexta chegou. Eustáquio saiu por volta das 21 horas de seu cafofo, depois de jantar calmamente em companhia da esvoaçante Rayanne. Dona Valquíria já o aguardava, com toda a parafernália armada. Recebeu R$ 5 mil reais pelo aluguel da urna mortuária totalmente confeccionada em madeira negra, posta em uma bancada com quatro velas acesas em enormes castiçais. Eustáquio se encontrava realmente cansado, abatido, olhos fundos, o corpo implorando por um banho demorado, uma massagem nos pés, quem sabe uma trepadinha em meio aos lençóis limpinhos e cheirosos, para findar com chave de ouro a noite. Faria tudo isso na volta. Quando se pilhasse em seu quadrado, daria um trato bem dado na sua inimitável e querida musa. Rayanne que se preparasse. Ele ia dar trabalho. Quem sabe até partisse para mais um filho! A raspa de tacho. O caçula. E por que não? Todavia, embora sonhasse antecipadamente com essa chegada triunfal, preocupações descomedidas não lhe davam tréguas.

Não via sinais de melhora por menores que fossem. E dinheiro saindo dos seus bolsos, ora para isso, ora para aquilo, uma porrada de velas brancas, pretas, de sete dias, os cambaus. Fez, então, um juramento. Seria a última cartada. Ou dava certo agora, ou mandaria dona Valquíria à merda. Assim pensando, deitou com cuidado no esquife. Vagarosamente. Dona Valquíria, mais a filha, fecharam a tampa. O negócio duraria uma hora. Bastante compenetrado, Eustáquio se concentrou nos Pais Nossos. Não poderia errar, tampouco esquecer uma palavrinha. Carecia de afastar a fadiga, a torpeza dos olhos, o desânimo do corpo, a dormência das mãos. Havia tido um dia tumultuado e corrido. E a Rayanne? Antes de dormir queria lavar a égua...
“...Iap osson, euq siatse on uéc...

Um dia estafante e sem tréguas para alguns minutos de descanso. Nessa de reza daqui, reza dali, reza acolá, cochilou bonito no escurinho gostoso e aconchegante do féretro gasalhoso. Em questão de segundos, passou do madornar ao entorpecimento profundo e então roncou como nunca havia roncado e babou como jamais havia babado. E sonhou com a sua Rayanne. Sonhou com a fodinha que lhe daria quando botasse os pés em casa... sonhou com o filho que pretendia ter com ela... a raspa de tacho. Sonhou... sonhou... sonhou... e então... inesperadamente...

TEVE MORTE SÚBITA.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 19-12-2023

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