terça-feira, 12 de dezembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Como se caminhasse num labirinto de espelhos estilhaçados

Aparecido Raimundo de Souza

NÃO ERA O SORRISO mavioso e insinuante daquela professora, tampouco os gestos delicados e expansivos, aguçados e urbanos que o entusiasmavam. Nem a letra impecável de sua mão direita desenhando frases no correr do giz branco sobre o escuro do quadro negro da enorme sala de aula. Não também os quase trinta e poucos colegas que ocupavam as carteiras ao seu entorno, as adolescentes (mesma idade que ele) com seus piercings grudados nos ouvidos e narizes, recheados, outrossim, com falsas missangas, tranças coloridas e lencinhos impecáveis em volta dos pescoços, ou grosso modo, algumas mais afoitas, “vestimentadas” em minúsculas sainhas curtas e justas, mostrando as formas pecaminosas com destaques para um número variado de calcinhas recheadas com desenhos de elefantes  e passarinhos e uma enxurrada de outros tantos adereços chamativos.

Para ele não importava a paisagem bonita que entrava com o sol e desenhava silhuetas engraçadas nas paredes imundas junto com o vento calmo da manhã tranquila. Coisa alguma tinha o condão de desviar a sua concentração. De igual modo, não se consubstanciava a sua imaginação observativa, na estatura alta que o deixava fora do chão, nem os cabelos lisos e longos, descendo em forma de cascata enfunados de fios loiros e brilhantes até a cintura. Tampouco o jeito simples de senhorita recatada do interior ou os trejeitos delicados com os quais se dirigia a quem dela se aproximava. Não se resumia na mera sutilidade de como carregava a bolsa, o apagador e os diários de classe. O piá viajava quilômetros além do imaginário quando grudava as suas voluptuosidades na pele do rosto da “deusa vinda de um tempo mitológico”, como se usufruísse de seus deliciosos beijos depositados naquela boquinha bem torneada rescindindo transgressões nunca por ele vivenciadas.

Sem amarras seu “eu” desajeitado rodopiava no abraso do deslumbramento dos pecados que fluíam de seu acomadrado numa espécie rara de inocência fidalga, como se num repente expluísse entrelaçado à sequência de minúsculos gestos acelerados que mexiam descompassadamente com seu coraçãozinho de “pequeno-homem-menino-solitário.” Não sabia, não tinha a menor ideia de como fazer uso do magnetismo saliente que estrondava do profundo de sua alma, nem como aguentar o beliscar roçante das horas que pareciam construir o perspícuo do seu andar. Não só edificar, mover, de contrapeso, à sedução do seu distinto e “maneiro” entrançado no ir e vir da cantina ou da área destinada aos demais educadores (até onde a inimitável ministrava em outras classes as suas aulas de português) que realmente o deixava nervoso e fora de si. Senão tudo o que acima foi dito, o que fazia aquele aluno idiota de dezessete anos capengar das próprias pernas, sorrir matreiro, para dentro, como se tivesse a morbidez de se desvestir ou se desvendar por inteiro?

O que conduzia os milhares e milhões de fios condutores de seus pensamentos a se amontoarem numa espécie de torpor e magia? Seria a poesia que nascia dos recônditos dela?  Ou o amor tresloucado que promanava de dentro de seu núcleo que o deixava fraco, petrificado feito um molequinho bobo diante de um brinquedo almejado, visto numa vitrine de lojas de departamentos?  Quem sabe, um objeto raro que não podia ser tocado pelo motivo de estar fora do alcance de seus desejos de “garoto-criança”?  O que, afinal de contas, o paralisava enlouquecido, doido, quase varrido, a ponto de invadir a sala de aula antes dos demais se assentarem em suas cadeiras costumeiras e deixar discretamente na mesa, escondido, em meio das coisas dela, uma rosa roubada de uma vizinha com um bilhetinho escrito “TE AMO,” única forma de demonstrar, sem ser visto e notado, o tamanho da paixão que nutria por aquela doce criatura? De onde provinha o amor arrebatante que inundava toda a sua alma e fazia a esperança virar festa com música alta tocando em seus ouvidos sem parar? 

Depois que ela chegava e se fazia real dentro do espaço que compunha o tablado diante dos demais, a sua essência inteira se abria em flor. Se alongava em um uma espécie de jardim mais estupefaciente que aquele de onde roubava diariamente as rosas da vizinha confinante à sua residência. Ele, como se feito de material inflamável (tipo esses de matéria plástica), se derretia, se encolhia como se fosse visto e filmado em câmera lenta por um cinegrafista sem rosto. A presença dela, ali na escola, ou em qualquer lugar em que cruzasse com a emoção que escorria de suas concavidades, como água em nascente, parecia ser a combustão que o acaso derramava, e, em seguida, tocava fogo, queimando... como brasa fumegante, incendiando e fundindo seu corpo ao da adorada mestra... o brinquedo proibido da vitrine que ele queria tanto. O momento inventado e esperado, a graça completa, o espectro dos prazeres se insinuando em vendavais de quimeras, tal como se esperasse o flagrante mágico para ser engolido, devorado por sua incandescência faminta.

Na pausa derradeira do intervalo da aula, o término da fascinação se agigantava. A espera enfadonha e cansativa até o dia seguinte, para tornar a vê-la. Sentir seu calor, seu corpo, ou tocar, ainda que de leve as suas partes com os bugalhos de um adulto... comer as suas vísceras com o silêncio dos apaixonados, ouvir o coração aflito, em pânico, pedindo socorro, ajuda, atenção... todavia, o que fazer? Ou como se achegar? Como agir? Ele não ia além de um simples aluno. Não podia, nem dispunha de recursos para ultrapassar as interrogações que turbilhavam, nem jogar a carroça diante dos burros. Possivelmente, no estágio seguinte, quando pulasse para outra série, ela o notasse ali, quieto, parado, perscrutando, crescendo e não só se agigantando, morrendo de amor, ensaiando as palavras certas, registrando tudo ao redor num curta metragem animado. Talvez, depois de algum tempo (não sabia precisar quanto), o seu todo subisse, subisse, e lá do mais grandioso imarcescível se esvaísse livre, leve e solto... e se duplicasse aquém do imaginário como uma espaçonave de presságios venturosos em direção à imensidão cálida dos carinhos do Criador.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 12-12-2023

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