quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

[Daqui e Dali] Como entrou Maria Matos no Conservatório


Humberto Pinho da Silva

Compareceu no Conservatório de Lisboa frágil e deprimida rapariguinha, que vinha prestar prova da admissão.

Diante do ilustre júri, a garotinha, enfiada, permanecia constrangida, contrafeita, estática e de olhos assustadiços.

Nervosamente balanceava as vestes, como as quisesse compô-las, numa tremenda ansiedade.

Condoído pelo inopinado acanhamento, o júri sussurra-lhe em voz amiga:

- Diga, por favor, um poema...

Enrubesce de pejo a menina, e erguendo a custo os embaciados olhos:

- Não me recordo de nenhum...

Compassivos, insistem, amaciando ainda mais a voz:

- Pequeno texto, que goste. Qualquer coisa que conheça de cor.

- “Não me lembro de nada...” proferiu em voz apertada, temendo e tremendo, mormente os irrequietos bracitos.

Estupefactos perante o inesperado acanhamento, o júri já pensava vedar-lhe o ingresso quando...

Mirando pensativo a rua, de olhar vago, olhando através da vidraça da janela, o dramaturgo Dom João da Câmara – membro do júri – presenciava, apreensivo, e em silencio a cena deplorável.

Acerca-se da retraída menina, e movido de comovida compaixão, enternecido, sugere:

- Menina, diga a Ave Maria.

Empertiga-se a jovem, perfilha-se, enrija o peito, e em tom forte e sonoro inicia a invocação.

Foi a mais comovedora e terna invocarão à Mãe do Céu, que jamais se ouvira.

O escritor, poeta e dramaturgo, descendente do conhecido navegador João Gonçalves Zarco, num gesto de singular bondade, conseguiu que a inesquecível atriz Maria Matos, pudesse matricular-se no Conservatório.

Não devo terminar a crônica sem contar a mais sublime faceta da atriz: a gratidão.

Em missiva (*) datada de 28 de junho de 1910, depositada na posta de Castelo Branco, endereçada à sua mãe, a Senhora Dona Emília da Câmara Almeida Garrett, amiga de Maria Matos, escreveu:

(...) A atriz está aqui em "tournée" e parece-me muito atilada (baseava-se na conversa que teve, em sua casa, com Maria Matos,) e confessou-me que sempre possível passa pelo cemitério onde repousa Dom João da Câmara e, junto do túmulo, reza e pede-lhe conselhos. (Cito de cor).

Maria Matos era de sensibilidade delicada e nunca olvidou quem lhe facilitara a fulgurante carreira artística.

(*) Carta que minha querida amiga Dona Maria Eugénia da Câmara Rebello de Andrade, neta do escritor, teve a gentileza de ma ler.

Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, dezembro de 2023

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