terça-feira, 28 de novembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Uma estrela imutável no meu céu eterno

Aparecido Raimundo de Souza

EU ESTAVA NERVOSO
, curioso por saber uma coisa que havia ouvido o Carlinhos falar, lá na escola, na hora do recreio. Resolvi perguntar para o tio César, embora, de antemão soubesse que ele não daria nenhuma resposta coerente, pois vivia pelos cantos, bêbado feito uma mula, acorrentado numa atmosfera de refluxo impenetrável, quase subversiva. Mesmo assim, arrisquei. Quem sabe ele acordasse para o mundo... de repente:
— Tio César, vá à merda é com pauzinho ou sem?
— Que pauzinho, Toninho? Que pauzinho?
— Aquele em cima do a.
Tio César olhou para um lado, depois para outro. Mal distinguia em que canto, à sua frente eu me encontrava:
— Acho que é com pauzinho. Pergunte ao seu avô. Ele sabe tudo.
De fato. Corri para o lado de meu avô numa agilidade furiosa. Vovô deveria estar na sala, vendo televisão, ou conversando com a vó Benedita.

Vovô realmente estava no lugar de sempre. Não conversando com a vó Benedita, mas naquele momento, com a atenção voltada para o jornal que chegava todas as manhãs trazido por um rapazote que passava de bicicleta e jogava o embrulho na varanda. Ao entrar no aposento que formava a peça, com minhas preocupações de criança à tiracolo, logo que o vi acomodado na cadeira de balanço predileta, defronte a televisão que falava para as paredes sem sequer pedir a benção, como sempre fazia e com o atropelo da idade que me empurrava para frente e a atmosfera da ansiedade no coração, não perdi tempo e mandei bala:
— Vovô, vai à merda...
Vovô largou o jornal num canto e se virou para mim, furioso:
— Seu cachorro de uma figa. É assim que fala com os mais velhos? Vou te dar uma coça...
Levantou de repente e juntando a ação às palavras abriu a correr na direção onde eu me achava parado:

— Espera, vovô, eu só queria saber se vai à merda é com pauzinho ou não.
— Nada disso, seu pestinha. Você me mandou à merda.
— Juro que não, vovô. Eu só perguntei...
— Então por que está correndo?
— O senhor jogou o jornal para cima, as notícias caíram no chão, e a sua fúria saiu junto com a sua cara de poucos amigos atrás de mim...

Vovô ia iniciar outra volta em torno da mesa enorme da sala comprida, mas depois da terceira tentativa em face do percurso repetido do espaço para me pegar, parou com as mãos na parede, ofegante. Olhou firme para meu rosto, por debaixo dos olhos de grau. Sorriu condescendente e falou:
— Vem cá, meu filho. Abrace seu avô.
— O senhor não vai me bater?
— Não. A raiva já passou.
— E por que o senhor não coloca o chinelo no pé?

Vovô voltou a sorrir à esta minha observação astuta:
— Pronto. Já calcei o chinelo. Agora venha.
— Promete que não vai me dar umas palmadas?
— Eu prometo.
— Então eu vou...

Fui e me deixei aninhar entre os braços carinhosos de vovô. Gostava deste homem de cabelos brancos. Amava, o tanto, que às vezes sentia, no fundo da alma um medo muito grande, principalmente quando papai discutia acaloradamente com ele. Nestas ocasiões vovô ficava de cabeça baixa, olhando para o chão, como que tentando encontrar num ponto do assoalho, um buraco para se meter dentro e sumir não sei para onde. E eu, aos cinco anos, escondido nas costas da cristaleira de vidro, embora achasse que ele tinha razão, não podia falar nada, nem tomar seu partido. Além de pequeno e sem o entendimento necessário que movia os de mais idade, o pai, não admitia, em hipótese nenhuma, que criança metesse o bedelho em conversa de adulto.

E eu, mero criançola, pequeno em tamanho, mirrado na idade e curto na altura para orquestrar qualquer coisa, ou fazer bailar uma situação por mais inocente que fosse em defesa de vovô não tinha a ideia de uma iniciativa coerente que me colocasse à cavalheiro ainda que numa berlinda imaginária:
— Vovô eu te amo.
— Eu também te amo.
— E o senhor também ama o papai?
Antes de responder ele me soltou e espiou comprido para bem dentro dos meus olhinhos espertos. Havia em seu semblante uma ternura grandiosa repletada de uma afetuosidade incomensurável:
— Por que me pergunta?
— Só queria saber.
— Claro que amo seu pai. Ele é meu filho. Amo a ele, como amo a seu tio César e a sua tia Clara. E como amo a você também.

Permaneci um longo tempo em silêncio. Um silêncio pesado, denso, contaminado pelo volume da ansiedade abrupta que remoía todo meu ser de forma avassaladora.
— Ora, vamos, o que está havendo?
— Nada, vovô, nada, só queria saber.
— Nada não é resposta. Onde realmente você quer chegar.
— À lugar nenhum, vô. Perguntei por perguntar.
— Está bem. Se você está dizendo, eu acredito: e quanto a sua outra pergunta?
— Que pergunta?
— A que me fez deixar o jornal e sair correndo na sua afoiteza de não ser apanhado. Será que este menino é o mesmo gurizinho pirralho que fiz prisioneiro em meus braços?
— Ah!...
Risos:
— Eu queria saber se vai à merda é com pauzinho ou sem.
— Que história é esta de pauzinho?
— Aquele, vô, que “vai em cima do a”. Que fica deitado, do lado esquerdo, assim, como se fosse um risquinho...
— Aquilo se chama crase.
— E o que é crase?
— Eu explico.

Com toda a paciência do mundo, algumas palavras amputadas pela ausência dos dentes faltosos, ele virava um mestre de conhecimento profundo. Hoje, contudo, tantos e tantos anos passados, não existe mais o vovô. Ele partiu para sempre, numa manhã de chuva forte. Voou em direção ao infinito onde todas as tardes, sentado na varanda, ao lado de vovó Benedita, me mostrava as estrelas, apontando aqui e ali e falando o nome de cada uma:
— Um dia seu avô vai virar uma estrela e ficará lá de cima vigiando você aqui embaixo...
— Vovô, eu não quero que o senhor vire estrela.

Eu sei que ele inventou toda esta coisa de virar estrela só para me fazer um pouco mais feliz e preencher a minha infância vazia e carente da presença paterna. Talvez, em razão deste pormenor, eu tente, a cada novo dia, recuperar o vazio que a sua presença deixou dentro de mim, ora sentindo o calor dos seus abraços, ora ralhando comigo, por alguma peraltice além da conta, ou mesmo quando ficávamos, os três, na varanda, vovó Benedita envolta com seu crochê e vovô comigo, em seu colo, tentando me fazer dormir apesar dos gritos de tio César lá nos fundos, feito um louco varrido, devido os vapores do álcool. Vovô criou, em mim, um estado de pureza e de simplicidade muito grandes. Tantos janeiros desde então, quando olho para o céu escuro, vislumbro sempre uma estrela mais brilhante que as outras. Mesmo sabendo que aquela estrela, como as demais que lá estão são astros criados pelo Todo Poderoso, ainda assim, e sobretudo, alimento o vazio e me sinto feliz, promovendo a ideia de que ele é uma delas, e que realmente está lá de cima, me vigiando, cuidando de mim com o mesmo carinho, com o mesmo afeto de quando ainda vivia entre nós.

Quem sabe, um dia, eu também não vire uma estrela e, como vovô, também possa, lá do muito alto, espiar aqui para baixo e embalar os medos e receios dos meus netos, bem ainda lembrar de como me sentia venturoso e próspero, afortunado e beatificado, sem saber, igualmente, que a felicidade plena e imutável estava ali, ao meu lado. Que próspera nascia abrupta em meu ser e se expandia pela alma em clima de festa a cada vez que ele me aninhava em seu colo e me contava historias de príncipes e princesas que moravam em castelos encantados, eu me revigorava, me fortificava, me reanimava e me revitalizava. Neste tempo sem volta, eu dormia, refestelado e sem os subornos de horas amargas. Espantava para longe os dissabores que pretendiam turvar meu agora com as cores enegrecidas de um cinzento pesado. Além claro, de afugentar os berros frenéticos de tio César que vinham em profusão perplexa e anárquica lá dos fundos de um puxadinho onde ele se abrigava e se confundiam com o vento gélido das noites estupidamente longas e tempestuosas.


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 28-11-2023

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