José Meireles Graça
E as pampas, hã? Que maravilha. Buenos Aires então, aquilo é como uma cidade europeia. E tens lagos altos que só visto, uma variedade de climas (com quase 4.000 km de comprimento para 1.400 de largura a coisa dá para assar ao Norte e gelar no extremo sul), e – não esquecer – é a terra do tango, de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar (não li, mas diz que são famosíssimos). A carne é do melhor (são tradicionalmente grandes exportadores) e parece que até à Grande Guerra, e mesmo até ao fim da década de 20, o país ombreava com as economias que mais se desenvolviam. Depois ficou com sezões, até hoje, com um caudillo e uma primeira-dama célebres pelo meio, ditaduras e várias falências (três desde 2001, de um total de nove).
Os números são aterradores:
mais de 140% de taxa de inflação, mais de 40% de pobres (não apurei se, dos
variadíssimos conceitos que existem, esta percentagem se refere a indivíduos
que recebem menos do que 60% do rendimento mediano ou outro qualquer), produto
por cabeça estimado quase ao nível de 1974, emigração de cérebros, fuga de
divisas, défices permanentes das contas públicas, economia de tobogã ao longo
dos anos, isto é, com crescimento significativo seguido de recessões profundas,
sector produtivo débil por estar tradicionalmente abrigado da concorrência
estrangeira, fuga de divisas, banco central carente de independência, e um
longuíssimo etc.
(A fuga de divisas chega a ser caricata: da muita literatura que consultei não vi referências ao que fazem os exportadores que são pagos em moeda estrangeira, mas forçadamente convertida em pesos a um câmbio inferior ao do mercado negro – o Estado precisa desesperadamente delas e há muito que os câmbios oficiais deixaram de ter qualquer correspondência com o valor real do peso. Conclui, porém, que devem fazer o que é lógico, isto é, subfaturam e criam contas no exterior para as diferenças, que não chegam a sair do país importador).
Pois bem: um indivíduo que
comentadores circunspectos, da esquerda à direita, declaram como um palhaço
louco, ganhou as eleições. A alegada palhaçada vem-lhe do corte de cabelo, da
veemência e radicalismo das declarações, que incluem vernáculo no tratamento de
oposicionistas, utilização em campanha de uma motosserra para simbolizar os
cortes necessários, e um comportamento com frequência histriónico; e a loucura
de um programa que inclui coisas como a dolarização da moeda e a extinção do
banco central, a negação da origem antropológica do aquecimento global, a
rejeição completa da agenda woke, a extinção de uma quantidade
assinalável de ministérios, incluindo o das Mulheres, Género e Diversidade,
além de uma quantidade de medidas, chocantes umas, originais outras, que cabem
no que genericamente se pode designar como liberalismo libertário.
É impossível que possa aplicar
a totalidade do seu programa porque não tem a maioria no Congresso e este tem
extensos poderes. E é decerto ciente dessa limitação que Javier Milei já
começou a pôr água no vinho de anteriores posições: por exemplo, telefonou ao
papa, seu compatriota, convidando-o a visitar o país, não obstante ter em
tempos declarado tratar-se de um Jesuíta que promove o comunismo; e já pôs em
banho-maria o seu antagonismo em relação ao Brasil e China, ainda que ao mesmo
tempo declare que vai alinhar com os EUA, Israel e o mundo livre.
Entre nós o homem é de
“extrema-direita”, como Trump, Bolsonaro, Orbán, Meloni, Morawiecky, o caseiro
André Ventura e outros.
Porém o mesmo chapéu não pode servir para todos estes políticos. Trump, por exemplo, é um protecionista e Javier Milei o exato oposto; e é preciso um prodígio da imaginação para fazer equivaler Jair Bolsonaro a Giorgia Meloni, ou achar que Ventura tem um programa económico liberal consistente. A menos que se queira dizer que desde o momento que se queira pôr um dique à marcha imparável de todas as esquerdas para reforçar o papel do Estado na economia e na vida das pessoas; a transformação da livre iniciativa num capitalismo de compadrio; que a liberdade de opinião seja a de pensar dentro das baias apertadas do bem-pensismo oficial; e que a propriedade seja um íman para impostos, a história uma falsificação ignorante e interesseira e os magistrados da opinião, bem como os da Academia, um vasto rebanho papagueando as mesmas doutrinas falidas e daninhas na economia e na engenharia social: se é de extrema-direita.
Os quais políticos de
extrema-direita, a julgar por estes exemplos, têm uma característica curiosa:
chegaram ao poder em eleições livres, os que já chegaram, e dele saíram, os que
já saíram, pelo mesmo caminho. Morawiecky, aliás, ganhou as recentes eleições e
nem assim vai formar governo, porque não tem a maioria no Parlamento, como
sucedeu com Passos Coelho, que talvez também fosse de extrema-direita – a
doutrina não é pacífica.
No continente americano
Nicolás Maduro ou Díaz-Canel, por exemplo, com eleições é que não vão sair, o
que levanta um problema: se a extrema-direita é democrática e a
extrema-esquerda não, um dos sectores do espectro político deve mudar de
designação. Ou então os comentadores devem apresentar-se em público com orelhas
de burro, o que no caso de alguns teria ainda a vantagem suplementar de lhes
disfarçar a caspa.
Buenos Aires é uma capital
europeia, como a língua; o país católico, as instituições democráticas, o
potencial grande como o país; e Javier Milei um comentador, académico e
político com esteroides. Diz-se anarco-capitalista e é socialmente conservador.
Louco? Os sensatos puseram
reiteradamente a Argentina de joelhos, onde está. Pior não pode fazer, donde
seria prudente, para dizer o mínimo, que a direita envergonhada que aprecia que
a esquerda a olhe com tolerância lhe desse ao menos o benefício da dúvida.
Título e Texto: José
Meireles Graça, Delito de Opinião, 28-11-2023
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