sexta-feira, 17 de novembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Botija da cura divina

Aparecido Raimundo de Souza

VENHO CAMINHANDO
tranquilamente pela rua Benedito Fernandes, quase esquina da Rua Projetada, em Santo Amaro, Zona Sul aqui de São Paulo e, de repente, ao passar em frente à pequena e modesta igrejinha do chapeleiro chapeludo Vaideespirro Sentiago, uma jovem na casa dos vinte e poucos me detém os passos. Seu rostinho é simples e encantador. Apesar disto, lembra uma hiena faminta à procura de um prato cheio de merda. Me endereça um sorriso deveras engraçado, tipo um grito preso à garganta cheia de espinhas avermelhadas:
— Bom dia, senhor...
Repondo meio que sem graça, tendo em conta que a moça, por se parecer com uma hiena menstruada a poder de conta-gotas, é carnívora e, quando se alegra, significa que encontrou a sua comida preferida:
— Bom dia.
— Quero lhe fazer um convite especial.
Tentando levar na brincadeira, solto uma de minhas piadinhas sem graça:
— Vai me pedir em namoro?

Ela se faz imediatamente séria e tenta se concentrar no bote que pretende me dar:
— Não senhor.
— Já sei. Quer ir comigo até ali a outra esquina onde uma farta e pomposa padaria nos espera de portas abertas e me pagar um delicioso e inesquecível breakfast?
— Também não.

Lembro, entrementes, que as hienas fêmeas são mais agressivas que os machos. Melhor escutá-la e ver o que pretende. Num ímpeto obsessivamente nervoso ela pode me ver como um gnu, ou pior, colocar na sua cabeça que por não ser bonito, me considerar um de seus pratos preferidos, a base da coprofagia e, por conta, me fazer perder o lindo corpinho apesar dos setenta anos.
— Ok. Sou todo ouvido.
Antes de continuar me apresenta um folheto:
— Senhor, o convite que lhe faço é para que venha comigo em visita ao Nosso Templo. No que fala, aponta o prédio fronteiriço.

Dou com um espaço de quarenta e seis mil metros quadrados de área construída, contendo cinco pavimentos, elegantes elevadores e deliciosas escadas, além de um galpão de tirar o fôlego com um vão livre de dezessete mil metros quadrados além de um gigantesco estacionamento ao lado para mais de oitocentos carros. Uau! É a pobretona pocilga em carne e osso da “IGREJA MUNDIAL DO PODER PARA ENCHER DE GRANA VIVA O REINO ENCANTADO DO APÓSTOLO VAIDEESPIRRO SENTIAGO “ÀS CUSTAS” DO SAGRADO NOME DE DEUS E ALICERÇADO PELO POVO IMBECIL QUE ALIMENTA A QUITANDA ATRAVÉS DOS DÍZIMOS QUE DEVERIAM SER DESVIADOS ÀS COISAS SAGRADAS DO ALTÍSSIMO.””

— Quero que participe do nosso encontro e, ao final dele, receba a Botija.
— Botija?
— Sim.
— De gás? Tenho duas em casa. Pouco uso o fogão. Faço as minhas refeições fora, em restaurantes os mais diversos e...

Ela me interrompe bruscamente:
—... Senhor, faço referência a Botija contendo o Óleo da Cura Divina. Milhares de pessoas já foram contempladas.
— Cura divina?
— Sim. Venha comigo, por favor. Com a aquisição da Botija do Poderoso Óleo da Cura Divina, seu espírito será purificado contra invejas, feitiços, doenças, mandados perniciosos e vícios infames colocados em seu caminho além das centenas de amarrações e até amores desfeitos...
— Nossa, tudo isto?
— E muito mais. A Botija com o Óleo da Cura Divina desfará os feitiços, anulará os maus olhados, impugnará as invejas e libertará o senhor de todos os laços que existirem em sua jornada.
Não pude de deixar de sorrir em meio a tantos prodígios e fenômenos:
— Minha linda, não tenho feitiços ou invejas. Tampouco vícios ou laços a serem desamarrados. Meus passos estão livres.

A beldade insiste:
— Isto é o que o senhor pensa... muita gente à sua volta tem olho grande em suas coisas.
— Não tenho nada. Sou um representante da banda pobre. Possuo apenas o básico para viver.
— Poderá ter muito mais se adquirir a Botija com o Óleo da Cura Divina.
— Que tamanho é esta tal Botija?
— Do tamanho de uma garrafinha de refrigerante de 600 ML.
— Um...
— Venha comigo. São poucas as unidades e uma reservei especialmente para o senhor.

Ela me pega pelo braço e já ia quase me arrastando. Estanquei:
— Calma. Tenho que pagar?
— Para entrar no templo não. A Casa do Senhor está e sempre ficará aberta.
— E a botija?
— Por ela o senhor não pagará. Fará uma pequena contribuição ou doação para a Templo ou grosso modo, para a Casa do Senhor.
— Estou sem dinheiro. Mais duro que... deixa pra lá...

Solta uma meia gargalhada. Fica séria:
— Acetamos todos os cartões de crédito na modalidade débito, Pix, PicPay, ou dinheiro vivo em espécie.
— De quanto seria a pequena contribuição?
— Mil reais, senhor. Por mil reais o senhor terá ao alcance das mãos a cura para todos os seus males e dissabores. Como disse, e repito, a Botija com o Óleo da Cura Divina lhe aguarda. Venha comigo para adquirir novos horizontes para a sua vida.
— Agradeço, minha princesa, mas fica para uma próxima oportunidade.
— Senhor, todos os seus males... serão curados... seu corpo purificado de toda inveja... feitiços, doenças vícios e amarrações...
— Vamos inverter as coisas.
— Como assim?
— Darei a você mil reais para você vir comigo até minha casa. Tenho lá uma botija que fará você feliz. Vamos? Topa? Aceita?

A preciosa se fecha numa carranca feia, tipo assim, como a de uma hiena que acabou de ser escorraçada do bando, ou pior, de poucos amigos, tão logo ouvida à minha proposta. Invocando o nome do Altíssimo se afasta ligeira, gritando:
— Vai de reto, satanás. Deus é mais!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

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