terça-feira, 17 de outubro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Recordações de um passado que não desgruda

Aparecido Raimundo de Souza  

NUNCA FUI um sujeito de ir à missa aos domingos, de rezar de joelhos, os pensamentos compenetrados nas palavras do celebrante, as mãos cruzadas em atitude de respeito. Não me recordo de ter acendido velas no cruzeiro, de fazer reverências diante dos santos, e como um bom cristão, molhar o dedo no vidro de água benta e esparramar na cara o sinal da cruz. Tampouco de jogar uns trocadinhos na caixa de ofertas, pedir a benção do padre... enfim, sempre me portei como um católico pela metade, avesso a estas futilidades que alguns pirús de igreja levam tão a sério que chegam a gozar êxtases religiosos. 

Tive uma infância difícil. Desde tenra idade vivi longe dos carinhos maternos. Meu pai, separado de mamãe (que morava no Rio de Janeiro), aparecia de vez em quando, e, nessas escassas erupções, dava os ares da graça para pedir dinheiro ao meu avô. O velho tinha posses e segurava a barra dos dois únicos filhos que tivera com a primeira mulher. Não fosse ele, acho que tanto papai como a tia Nair sucumbiriam de fome e frio. Em outras palavras: colariam as suas imbecilidades num amontoado de merdas em uma destas privadas de hoteizinhos baratos de beira de estrada. 

Em decorrência de uma série de atropelos, me criei num mundo diferente. Na verdade, construí um universo só meu, onde os adultos não entravam. Nem saiam. Os brinquedos que povoavam meus sonhos de garoto, eu os improvisava com caixas de sapatos, caixinhas de fósforos, palitos de sorvete, tampinhas de garrafas e latas de leite em pó e de óleo. Vovô não se dava ao luxo de comprar as novidades que chegavam às lojas especializadas. Para ele, criança precisava de escola, roupas, remédios e calçados. O resto, bem o resto fazia parte de uma lista de eternos supérfluos, sendo, portanto dispensáveis. 

Nem rádio para se ouvir uma música existia. Vovô não permitia principalmente televisão. Em hipóteses nenhuma. Vovó Marta (sua segunda mulher), coitada, adorava uma novela que passava às sete horas da noite, e, quando estava quase dando o horário, combinada com a vizinha, dona Clotilde, casa de parede meia, a boa senhora vinha até o muro e gritava. Em outras vezes, batia palmas no portão. E lá ia a pobre longeva correndo, quase aos tropeções para não perder o capítulo do dia. Um pouco antes, punha a ferver, numa panelinha de alumínio, um aparelho de dar injeção juntamente com uma agulha.  

Seu Agenor (marido de dona Clotilde) tinha problemas de saúde e se valendo da doença do infeliz, vovó conseguia acompanhar, com certa regularidade a trama da história. Porém, o que eu mais gostava, neste tempo: os domingos. Não todos, mas especificamente aqueles em que mamãe Ana vinha me visitar. A autora dos meus dias (depois de viajar a noite inteira), chegava muito cedo, aportava com um monte de presentes na bagagem. Isto realmente me fazia no garoto mais feliz na face da terra. Ela passava o dia todo comigo. 

Saíamos, íamos a um restaurante, almoçávamos. Eu adorava arroz e filé com fritas. Nunca mudava o prato e a garçonete, quando chegávamos se apressava a mandar preparar o prato. Final de tarde, a caminho de regresso, parávamos numa lanchonete e eu me fartava no tal do misto quente com Coca-Cola. Por volta das oito, mamãe se recompunha para voar para a rodoviária. Ela então se despedia. Uma cena bárbara, recheada de muitas tristezas e lágrimas A sua partida me deixava fora de mim, do chão. Ficava um vazio grande corroendo dentro do meu peito seguido de uma dor muito forte e intensa que varava a noite e custava a passar. 

Contudo, a magia do encanto de saber que outro domingo (ainda que não o próximo) igual o último se repetiria depois, me dava forças hercúleas para ficar esperando, trepado numa cadeira, olhando, impaciente pela janelinha que havia na porta da sala. Este postigo me colocava em sintonia com uma rua larga e bonita, cheia de árvores floridas que se perdiam, lá longe, numa curva distante. Noutras vezes, esperava por ela em meu quarto. Aguardava impaciente, nervoso, os olhos injetados de um medo insalubre e mazelento de que ela, por algum motivo, não viesse. Quando não estava dentro de casa, deitava no chão de terra do quintal (que era imenso) e ficava prostrado. 

Me invadia uma angústia perturbadora, ao tempo em que arrimado num céu azul acima de mim, alimentava à espera, sempre à espera de que ele desabasse em cima de meus anseios, e, de repente, num piscar mágico do acaso, Papai do céu fizesse mamãe surgir do nada e eu me levantasse do medo mórbido que me envolvia até os cabelos da alma. No tempo do meu tempo, a alma tinha cabelos. Claro, nem sempre acontecia assim. Hoje, aos setenta, não posso dizer que sou totalmente feliz, mas no fundo, sou. Pelo menos um bocadinho. Tenho uma penca considerável de filhos e netos.  Uma, em especial, se fez igual a mim. “Cuspida e escarrada.” Mora longe e fica me esperando chegar todos os domingos, sentada na porta do condomínio, chupando o dedinho, perdida em pensamentos infantis, esquecida em seu mundinho limitado, sabe-se lá sonhando com o quê. 

Este fato me faz lembrar nitidamente dos meus tempos de menino de calças curtas, em que, igualmente à minha pequena, eu me olvidava dos demais ao redor e via diante de mim somente a figura elegante e radiosa de mamãe apontando na esquina da rua. Às vezes, o tempo se mesclava refulgido numa agitação inqualificável. Meu Deus, ela se fazia real. Se tornava em carne e osso. Em outras, a minha Felicidade morria lentamente dentro do peito e eu me trancava sem vontade de nada. Me refugiava pelos cantos, os olhos chorosos, o rosto entrelaçado numa solidão coalescente e pegadiça, difícil e feroz, que custava um bocado para me largar de vez e ir embora.    

Apesar destes contratempos, cheguei até aqui. Me sinto realizado. Não totalmente, mas dá para o gasto. Os filhos cresceram. A minha menina se fez mulher, me deu um neto. Continua chupando o dedinho. Os outros rebentos também se fizeram adultos. Casaram, separaram. Me deram netos. Apesar de toda a tecnologia que temos ao alcance das mãos, nunca telefonam ou mandam recados via WhatsApp. Mamãe, por seu turno, se cansou da vida. Foi embora de vez. Disse adeus num dia que se tornou melancólico e sem volta. Sua ausência me traz à lembrança um porvir agourento e aterrador. Nele não vejo o céu, tampouco o sol. Menos ainda as estrelas cintilantes. As noites do meu “hoje-agora” se fizeram compridas e inauditas.   

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Ribeirão Preto, São Paulo, 17-10-2023 

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