Henrique Pereira dos Santos
Um bom exemplo de como a falta
de informação ou, pior, a informação errada ou grosseiramente imprecisa, impede
qualquer discussão racional sobre problemas complexos é-me oferecido de bandeja
por um leitor do blog, que cito entre "" e em itálico, e
depois comento.
"Israel é o resultado
de um processo de colonização tardio, levado a cabo pelo Império Britânico sob
a influência de poderosos interesses obscuros em representação de pessoas que
nunca viveram na Palestina e com a cumplicidade posterior da defunta Liga das
Nações e mais tarde da ONU".
Como é frequente em assuntos
complexos, apela-se a teorias de conspiração: interesses obscuros,
cumplicidades e outras inanidades não concretizadas. Acontece que a realidade é
bem mais complexa: a criação do Estado de Israel é uma tentativa de solução
para problemas que existem há séculos numa região complexa e que são bem
visíveis no Líbano, na Líbia, no Curdistão ou no que se relaciona com os
drusos, só para dar alguns exemplos mais conhecidos e com pouca relação com o
problema dos judeus. O mesmo tipo de problemas existe, por exemplo, na região
dos balcãs e foram um assunto muito relevante na Europa do século XIX até à
primeira guerra mundial, estando relacionados com a ideia de fazer corresponder
a cada nação o seu estado, sendo ainda hoje uma fonte permanente de conflitos,
de que é exemplo o que se passa no País Basco ou na Catalunha.
No caso da nação judaica há
alguns contornos específicos que se prendem com o facto dos judeus terem sido
maioritariamente expulsos da sua terra há quase dois mil anos, mas haver
milhões de pessoas que mantiveram uma grande fidelidade aos valores religiosos
e culturais da sua nação, mesmo sem qualquer ligação à terra comum onde nasceu
a nação.
"Tudo começa em finais de 1917 com a chamada declaração de Balfour, ministro/secretário do Império à época, que consiste de carta enviada a Lionel Walter Rothschild, Barão Rothschild, dirigente da comunidade judaica do Império".
A ausência de um mínimo de
rigor histórico neste parágrafo é colossal. A carta referida não começa coisa
nenhuma, é antes o resultado de um processo longo. Em meados do século XIX
persistiam na Palestina cerca de 25 mil judeus, maioritariamente homens (e
respectivas famílias) cuja ocupação era o estudo das escrituras e que são
financiados por judeus da diáspora, visto que não praticam qualquer atividade
que lhes garanta o sustento. Na segunda metade do século XIX há um conjunto de
judeus em fuga de perseguições, sobretudo na Rússia e sua área de influência,
mas também do Iémen, que imigram para a Palestina à procura de um sítio em que
não sejam perseguidos (o império otomano era bastante liberal, desse ponto de
vista, não tendo uma prática de perseguição religiosa).
Estes judeus são sobretudo
agricultores, artesãos, comerciantes etc., e a sua imigração é acompanhada da
compra de terras, num processo de imigração legítimo. Sucessivas vagas de
imigração de judeus à procura de defesa em relação às perseguições de que eram
alvo, maioritariamente na Europa, sobretudo de Leste, mas não só, multiplicam
por dez a população de judeus na Palestina, que nessa altura sofria um lento
processo de despovoamento da população árabe, o que altera a composição étnica
e religiosa da palestina, com os judeus a representarem, na altura da criação
do Estado de Israel, já mais de 10% da população e, tão importante como isso, a
serem detentores grandes áreas de terra que tinham comprado (com o apoio dos judeus
do exterior, como o referido Rothschild, que financiou a compra de milhares de
hectares).
A ideia sionista de um Estado
para a nação judaica vai ganhando adeptos e depois de muitas soluções sobre a
sua possível localização, vai-se impondo a ideia do regresso à Palestina, onde
milhares de judeus se iam instalando sem esperar pela criação do estado
judaico. A carta a que o parágrafo refere é o resultado deste processo e da
derrota do império otomano que deixa um vazio de poder na região (não havia estados
árabes fortes, nessa altura), que a Sociedade das Nações procura colmatar
criando o protetorado britânico da Palestina, que incluía a Transjordânia, que
mais tarde dá origem ao atual reino da Jordânia.
"Nessa carta, o
Império Britânico arroga-se o direito de dispor da Palestina, território
conquistado ao Império Otomano e do qual se viria a tornar potência
administrante, para nela criar um território que servisse de pátria aos judeus
de então que nunca lá tinham vivido e sem a mínima consideração por quem há
séculos lá vivia, os palestinianos".
Na verdade, não foi o Império
Britânico que se arrogou esse direito, foi a Sociedade das Nações que entregou
essa responsabilidade ao Império Britânico. E também não foi sequer a Sociedade
das Nações que criou o Estado judeu, ou Israel, como se queira chamar, mas sim
a ONU, mais tarde, depois da segunda guerra mundial, com os votos favoráveis de
toda a gente, incluindo a União Soviética, com excepção dos estados árabes, que
votaram contra a criação do Estado de Israel.
Não o faz numa região de onde
estão ausentes os judeus, mas numa região em que os judeus são uma poderosa
minoria. Poderosa porque já são mais de 10% da população, poderosa porque são
detentores legítimos de milhares de hectares de terra, poderosa porque tem
apoio externo na diáspora judia que frequentemente é rica e poderosa nos países
em que vive e, a partir da segunda guerra mundial, moralmente poderosa porque
vítima de uma barbárie inaudita.
Acresce que em resultado das
perseguições aos judeus, sobretudo por parte da Alemanha nazi, mas muito longe
de ser caso único - o antissemitismo está muito expandido nessa época, sendo
claramente presente nas políticas da União Soviética de Estaline - há milhares
de refugiados judeus, sobreviventes do holocausto e das perseguições de que
foram vítimas durante essa época, que não tinham para onde ir, parecendo a
criação do estado judeu uma boa solução, sobretudo a grande parte de uma Europa
destruída pela guerra e sem grande capacidade de absorver e integrar esses
refugiados.
"O problema começa
aqui, agravando-se com a 2ª GM e o genocídio dos "untermenschen" da
ideologia nazi, nomeadamente judeus, de que resulta a invasão judaica da
Palestina"
Como visto acima, o problema
não começa aqui, o problema está aqui, mas vem de muito longe, sendo claramente
absurda a ideia de uma invasão judaica feita por miseráveis refugiados de uma
guerra em que foram barbaramente perseguidos.
"Ainda antes da
fundação de Israel em 1948, as milícias judaicas Lehi, Irgun e Haganah, que
viria a dar origem às atuais IDF, já matavam muçulmanos, cristãos e ingleses,
umas vezes à queima roupa, outras em massacres organizados, para eliminar quem
se lhes opunha e "dar espaço" à futura pátria dos que nunca lá tinham
vivido".
Esqueçamos a evidente
contradição entre a referência às milícias judias e a ideia de uma invasão
externa por parte de quem nunca lá tinha vivido, e concentremo-nos no que é
factual. Ainda antes da criação do Estado de Israel, como é, e bem, referido,
instala-se uma guerra civil, com todo o cortejo de barbaridades inerentes às
guerras civis, entre as milícias judias e árabes, perante a ausência de
intervenção da potência administrante, o Reino Unido, que propõe às Nações
Unidas a criação de dois estados, um árabe e outro judeu, como solução para
resolver o problema.
As Nações Unidas, como escrevi
acima, criam o Estado de Israel, com a oposição e os votos contra de todos os
países árabes e, no dia seguinte à proclamação de independência de Israel, o
estado judaico é invadido por cinco países árabes (Egipto, Jordânia, Síria,
Iraque e Líbano), com apoio da Arábia Saudita e da Liga Árabe, com o objetivo
de o destruir. A guerra civil que vinha a ocorrer, e a guerra entre Israel e os
seus vizinhos árabes que se lhe segue, dão origem à fuga de mais de 700 mil
pessoas (maioritariamente árabes) e, com a vitória de Israel nessa guerra,
criou-se o gravíssimo problema dos refugiados palestinianos.
A ONU, que contribuiu
fortemente para a criação do problema com a criação do Estado de Israel sem
assegurar os mecanismos de defesa desse novo estado face a vizinhos hostis,
apoia desde então esses refugiados, reconhecendo o estatuto de refugiados aos
seus descendentes, o que eleva o número de refugiados palestinianos para os 4 a
5 milhões atualmente. Ao contrário do referido, as decisões da ONU sobre a
criação do Estado de Israel apelaram sempre ao respeito pelos direitos das
populações árabes presentes na Palestina, mas ninguém previu o êxodo em massa das
populações, porque ninguém considerou o cenário de uma guerra como a que
eclodiu no dia seguinte à da declaração de independência, e muito menos a
dimensão do problema dos refugiados.
Provavelmente o Estado de
Israel acabou por agradecer a limpeza étnica que resultou do ataque dos países
árabes a Israel, fazendo pouco para reverter o êxodo das populações árabes (na
conferência de cessar fogo posterior, Israel propôs-se receber de volta 100 mil
desses refugiados, deixando aos países árabes a resolução do problema dos
outros 600 mil, o que me parece demonstrar pouca vontade de respeitar os
direitos das populações árabes que fugiram das zonas de guerra), bem como a
oportunidade para redesenhar as fronteiras do Estado de Israel que resultou de
ter ganho essa guerra. Note-se que na divisão inicial de terras, embora o
Estado judeu tenha ficado com 55% do território, as melhores terras, as terras
mais férteis, ficaram do lado Árabe, como é lógico, por serem as terras mais
densamente povoadas por quem vivia da terra, naquela zona, há séculos.
Note-se ainda que, setenta
anos depois, o esforço dos países árabes para integrar e resolver o problema
dos refugiados palestinianos parece ter sido ainda menor que o de Israel, cuja
população árabe representa um quinto da sua população. Em vários dos países
árabes, a integração dos refugiados palestinianos foi ativamente combatida, com
proibição do exercício de muitas profissões, compra de terras e dificuldades
grandes na aquisição de cidadania. A ajuda da ONU, que é estratosférica, acaba
a favorecer este status quo das principais vítimas do conflito, mantendo-as
vítimas que vivem de caridade alheia, em vez de as integrar em sociedades
funcionais.
"O processo de limpeza
étnica culmina com a Nakba - a expulsão de cerca de 750000 palestinianos dos
locais onde viviam há séculos".
Esta é a conclusão literária
do problema real dos refugiados, mas como descrito acima, tem muito pouca
relação com a realidade: as populações árabes palestinianas fugiram da guerra
(todas as guerras com Israel foram começadas pelos países árabes e tiveram
sempre como objetivo destruir o estado judeu), Israel provavelmente viu isso
com muito bons olhos e promoveu também expulsões, os países árabes vizinhos
nunca fizeram nenhum esforço sério de integração desses refugiados, com a
justificação moral de que os palestinianos devem voltar às suas terras quando o
estado de Israel for destruído, apesar da esmagadora maioria destes refugiados
já não terem qualquer ligação com as terras que hoje reclamam.
Para comparação, note-se que a
descolonização portuguesa gerou um número de refugiados da mesma ordem de
grandeza, a que chamámos retornados, e numa ou duas décadas a sua integração,
mesmo quando perderam todas as suas terras e casas, sem qualquer indemnização ou
compensação, estava concluída.
"Esse processo de
limpeza étnica e genocídio tem continuado até aos dias de hoje".
Isto é um tremendo disparate,
20% da população de Israel é árabe e Israel retirou, unilateralmente, de Gaza,
onde hoje vivem muito mais pessoas que as que viviam em 1948 (tem uma das
maiores taxas de crescimento populacional do mundo), ou seja, para limpeza
étnica, deve ser a única no mundo que resulta em mais e não em menos pessoas
das etnias que supostamente se pretende exterminar.
Aliás, é extraordinário que a
maior parte da população da faixa de Gaza tenha lá nascido, mas se considere
refugiada. Note-se que a Faixa de Gaza teve um governo palestiniano logo em
1948, até passar a ser administrada pelo Egipto onze anos depois, só sendo
administrada por Israel, na sequência da guerra dos seis dias (que resulta da projetada
invasão de Israel pela Síria e o Egipto), em 1967 e até 2005.
"Há uma semana atrás,
tal como o fizeram os combatentes da resistência judaica no ghetto de Varsóvia
em 1943, os movimentos de libertação um pouco por todo o mundo desde os anos
1950, o Hamas, alegadamente, revoltou-se e há quem ache isso extraordinário o
que, por si só, é sintomático de uma notável ignorância, ou incompreensão da
História e de que com ela nada aprenderam".
A abjecção moral deste
parágrafo, que pretende ser justificada por toda a anterior narrativa sem
qualquer relação com a realidade, impede-me de fazer comentários.
Título e Texto: Henrique
Pereira dos Santos, Corta-fitas,
17-10-2023
“Jornalismo” da Associação Brasileira de Jornalistas
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