Aparecido Raimundo de Souza
FREDERICO FALA MANSA
descobriu a traição infiel da esposa Vandeca das Mercês com o Pacheco Pé de
Mesa, um rapazola de vinte e cinco anos, sardento e parrudo, de quase dois
metros de altura, que labutava na padaria do “Manuel português”. A coisa já
vinha (segundo apurado pelas investigações policiais), se arrastando nos brios
do corneado há mais de seis semanas. A princípio, ele tentou levar as puladas
de cerca da vadia numa boa, sem fazer alardes e estrondos. Porém, a trama
cresceu de tamanho. Aumentou tanto a fofoca que acabou escapando dos controles.
O estardalhaço cruciante do mexerico, a partir de então, estufou como cano de
esgoto vazado estourando merda para o mundo fora das paredes do estabelecimento
onde ambos trabalhavam juntos, um ao lado do outro, oito horas por dia. O
Pacheco Pé de Mesa como padeiro e a esfuziante Vandeca das Mercês, como
confeiteira.
O romance prosperou. Vingou a
ponto de criar formas complexas e devassar. Passou da boca miúda do restrito
dos funcionários para os ouvidos maldosos e as línguas afiadas dos amigos e
vizinhos mais chegados. A galera danou a jogar, à goles extensos, indiretas
eivadas de sadismos baratos. Alusões aliás, tão diretas e certeiras que agiram
como dardos venenosos transcursando à esmo e às cegas o restrito minguado do
particular. Primeiramente a encrenca circulou no âmbito dos colegas de trabalho
– que se aproveitaram da desgraça e transformavam o que deveria ficar escondido
em piadas de péssimo gosto. Por segundo, o bafafá despinguelou o vertical de
alvenaria, cruzou portas e janelas e se avolumou como bátegas de águas
apodrecidas para as cercanias do condomínio onde o casal residia. Da noite para
o dia, dos porteiros ao síndico, dos faxineiros aos manobristas, todo mundo
sabia, na ponta da língua, da pouca vergonha da Vandeca e, consequentemente,
dos chavelhos que colocava no companheiro.
O prédio onde moravam virou
uma onda de disse-disse que explodiu para os demais da redondeza. A avenida, em peso, de ponta a ponta, seria
capaz de distinguir a adúltera pelo andar, como o aspado pela cabeça baixa e o
olhar vexado, perdido no infinito dos passos, devido à vergonha que carregava.
Alguém inventou um apelido novo, que, logo se fez colocado como um tabuleiro de
letras garrafais nos costados da adúltera. A partir de então, a Senhora dona
Vandeca das Mercês passara a ser conhecida pela alcunha de “Vandeca Chupa
Todas. ” Em paralelo, um boato infame dava conta de que antes do Pacheco Pé de
Mesa entrar em cena, a despudorada andou dando umas sentadas básicas no colo do
“Manuel Português”. Frederico, coitado, resolveu que chegara a hora de interromper
o itinerário daquela putaria vergonhosa. Sofria horrores o infeliz galhudo,
sitiado por uma pressão dos diabos.
Seu ouvido se transformara num enorme penico de excrementos saídos de todos os buracos e guetos. A fedentina se espalhara em trocentas direções como uma praga incontrolável de gafanhotos famintos. Diante deste quadro lamentável, resolveu interromper o bafafá de uma vez. Revelaria à esposa infiel que sabia do caso dela com Pacheco. Resoluto em seu intento, mal a doidivanas meteu o nariz dentro de casa, soltou os cachorros ferozes que latiam dentro de seu coração em frangalhos:
— Vagabunda safada. É este o pago que me dá depois de tudo o que fiz e ainda venho fazendo por você?
Fronteiriço ao casal, morava um francês na alvura dos quarenta. A varanda do dito cujo dava para a de Frederico. Tanto de um lado, como de outro, qualquer que estivesse circulando, podia ter uma ampla visão do interior do espaço um do outro, o que, de certa forma, não deixava margens à privacidade.
Dito de outra maneira: se o francês soltasse uns peidos, o Frederico mais a Vandeca, ainda que não quisessem, ouviriam os espocares e não só as explosões. Cheirariam juntos e vice-versa. Desta forma, com os palavrões do marido ultrajado endereçados à esposa, a situação se tornara rotineira e maçante. Toda noite a pendenga vinha à tona:
— Vagabunda safada. É este o pago que me dá depois de tudo o que fiz e ainda venho fazendo por você?
O francês sentado na varanda tremia feito vara verde. Procurava apaziguar:
— Taisez-vouz! Taisez-vous!
Seu pedido, entretanto, se perdia na confusão desordenada dos berros de Frederico Fala Mansa e no choro convulso da Vandeca:
— Me deixa em paz! Não fiz nada! Pare de acreditar em mexericos...
Frederico Fala Mansa, enraivecido, protestava, espumando pela boca:
— Não? Vai me dizer que não está tendo um caso com aquele fedelho da padaria?
Vandeca das Mercês, logicamente, negava tudo:
— Isto é uma infâmia, uma blasfêmia! Sou de boa família, jamais me submeteria a certas baixarias...
O francês, apavorado, aturdido, indefeso pés e mãos amarradas, insistia:
— Oh, mês enfants, oh, mês enfants! Taisez-vous!
Até que um dia antes das oito a corda arrebentou de vez. Os ânimos se agitaram além da conta e o copo transbordou. Frederico Fala Mansa (a voz apartada de qualquer tipo de mansidão), partiu para cima de Vandeca. Depois de uma enxurrada de impropérios, desceu-lhe o braço, com vontade incontida. Apavorada, Vandeca correu para a varanda. Estava só de calcinha e sutiã. O francês lia o jornal da manhã. O condomínio todo veio ver o que acontecia. Uns berravam, afoitos: “Quebra a puta vadia no pau. ”
Outros, mais abrasados, completavam, sarcásticos: “Joga ela lá embaixo. ” O francês, como sempre, se abria a seu jeito e na sua língua nativa, em apaziguações:
— Taisez-vouz, Taisez-vouz!
Com efeito, o inesperado, o súbito eventual se agigantou. O abrupto não perdeu tempo. Aconteceu. Vandeca, na sacada, aos protestos e esgoelos e, pior, debalde, tentava livrar a fuça dos tabefes. Nisto, se desequilibrou. Seu corpo escultural e frágil ultrapassou os limites do minúsculo parapeito do passadiço. O francês, apalermado, largou o jornal. Num ímpeto de salvação estendeu os braços para evitar o pior. Vandeca segurou por frações de segundos, uma das mãos do seu salvador. Entretanto, o inevitável aconteceu como o acender e o apagar de uma lâmpada. O rumor dos residentes cessou num estancar incogitado frente aos gestos de um maestro a levantar uma batuta invisível para uma orquestra de estatelados.
A beldade, como se esperava, não obteve êxito. Igualmente o vizinho francês conseguiu evitar o desastre iminente. Ambos caíram, num amplexo enfaticamente coincidente. Voaram agarrados para além do peitoril. Despencam pelo fosso ao minuto em que se despregavam da vida e mais se aproximavam do trágico macabro sem volta. Na curta viagem dançaram desconexos, ora de cabeça para cima, ora de cabeça para baixo. Se debateram em piruetas não ensaiadas e engoliram, de repente, o vazio diabólico e destituído de retorno. Um oco composto por trinta andares se prontificou ajuntado ao uníssono de criaturas estáticas se deblaterando numa plateia de vozes aparvalhadamente assombradas: “Meus Deus, Meu Deus, que horror! ” Enquanto isto, Vandeca das Mercês e o francês terminavam a sua zaranzação meteórica num piso duro de cimento frio e gélido ao funesto em que se espatifavam em mil partes diante da silhueta fria e esquálida da morte.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 27-10-2023
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"Em briga de marido mulher não se deve meter a colher". O francês se ferrou por ser uma besta quadrada. O Aparecido deveria colocar as traduções para descomplicar a nossa falta de tempo.
ResponderExcluirEnrico
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