Aparecido Raimundo de Souza
No ar parado, uma bulha (4)
vinda de fora, de longe, do distante imensurável, entrava pelas janelas.
Atrapalhava o silêncio juntamente com um pitium (5) produzido pela fumaça dos
cigarros tragados pelos pais das crianças que conversavam aconchegados num
canapé azul claro. Maria Gorda, a velha preta cheia de atarefas na cozinha,
parecia ter saído de uma sapituca (6) recente, tamanha a pachorra que lhe
corroía a carcaça estropiada.
Se pudesse, ah, se pudesse, a
gosto de escolher, sem embaraços e estorvos, fugiria para sua camarinha (7) nos
fundos da casa e deixaria que a alma despenhasse (8) à fortuna de uma vereda
intransponível, onde a vida se acalmaria junto com o seu destino fatigado e
hostil. Mas o jantar dos patrões seria servido dentro em pouco e ela não
poderia imprimir delongas às panelas que fumegavam nas seis bocas do fogão
último tipo.
De frente para a tevê, as crianças
seguiam às voltas com o filme, a trama cataléptica (9) no seu enredo. Na
varanda, marido e mulher absorviam, à relho (10) solto, um papo sem fundamento,
desfraldado de qualquer tipo de emoção maior, tanto que as palavras, soltas ao
acaso, davam loopings fantásticos em meio às fumaças que subiam como fantasmas
assustados se desmunhecando em direção aos espaços de um teto carecente de uma
limpeza mais aprofundada.
Em meio destas massas tóxicas, olhares inócuos se misturavam enraizados num brilhar sem cor, enquanto o tempo vagabundeava à mercê do acaso, sem o azorrague (11) de qualquer coisa sólida que pudesse ser absolvido como normal. E o tempo passava invariável. O filme das crianças corria pouco passos de alcançar o final. Na varanda mais uma rodada de cigarros era acesa. Maria Gorda acabara de preparar a mesa e, agora, só faltava convocar o povo para que tomasse acento nela, cada um na sua respectiva cadeira.
Meia hora à frente, todos
acomodados ao móvel vestido em rigor apessoado para a derradeira refeição do
dia, congregavam num encontro que não transmitia emoção, ao contrário, pesava.
Os pirralhos não entravam numa avença (12) conciliatória. Eros não gostara nem
um pouco da história, sendo contraditado veementemente por Sofia, que amava de
paixão a velha mitologia. Seu Machado, cabeça do casal, pedira silêncio
observando que na hora da modulação dos talheres não se devia discutir
picuinhas.
Maria Gorda num canto,
afastada, solitária na sua dissimilitude (13) seguia atenta. Qualquer chamado
se faria presente antes que dona Giselda piscasse os olhos debaixo das lentes
fundo de garrafa. A doméstica não homologava dar de bandeja seus direitos, nem
ser chamada a atenção. Tantos anos naquela residência e a sua vidinha medíocre
e inócua continuava aborrecida, sem graça, sem açúcar, sem sal, literalmente
insossa.
De igual modo, sem os festejos
das cores, sem o cheiro saboroso de possíveis melhoras. Mesmo norte, sem
perspectivas de um amanhã de felicidade. Para ela, o tempo parara numa
determinada intermitência. E não seguira em frente, apesar das promessas que
fazia com assiduidade a ponto de latejar os joelhos nas missas dominicais, à
Nossa Senhora e das velas que acendia para seu anjo de guarda. Entrelaçados num
amplexo sem calor, sem energia, sem efervescência, seguiam Eros, Sofia, dona
Giselda e seu Machado.
O tempo, inexorável, em
caminho idêntico, seguia estagnado. Acorrentado, vegetava sem amanhã, se
amofinava, sem agora, se esfacelava querendo se perder de vista. Se destravar
do hoje. O tempo pleiteava voar para outros horizontes. Volutear aproveitando a
magia inebriante da cálida noite que se agigantava, que se avolumava além das
portas de acesso à rica mansão. Um peso morto, de braços dados à uma
desesperança infortunosa estancava tudo.
Talvez, também, seguramente
por conta disto, o amor na sua melhor força de expressão não se fizesse
bonançoso, impedindo que tudo e mais um pouco, naquela dinastia, se moldasse
feliz, bonito, irrefragável (14) e indubitavelmente real. Talvez, por estas
escarpaduras (15), mesmo sentido e direção, aquela pobre família rica não se
via, nem se sentia, nem se coadunava imensamente realizada dentro da própria
realidade em que viviam. Ou melhor dito: em que VEGETAVAM.
1 - Tarsila do Amaral. Pintura brasileira natural de Capivari, interior de São Paulo. Autora das obras de arte “Operário” e “A Cuca. ”
2 - Anita Malfatti. Pintora e desenhista brasileira. Deu vida aos quadros “O homem de amarelo,” Tropical, ” e “O Farol.’
3 - Cunhã. Mulher jovem, menina ou moça na flor da idade.
4 - Bulha. Ruído ou gritaria, alarido ou confusão.
5 - Pitium. Parasita de plantas aquáticas. Sinaliza também qualquer coisa que produza odores desagradáveis.
6 - Sapituca. Pessoa ligeiramente embriagada, tonta ou desfalecida.
7 - Camarinha. O quarto de dormir.
8 - Despenhasse. Pessoa que se precipitou ou caiu de grande altura.
9 - Cataléptica. Aquele que sofre de catalepsia, ou que vive em estado mórbido.
10 - Relho. Chicote para açoite ou instrumento com a finalidade de castigar alguém.
11 - Azorrague. Cipó para punição ou flagelo.
12 - Avença. Acordo, pacto, convenção realizada num negócio
13 - Dissimilitude. Desigualdade ou diferença.
14 - Irrefragável. Tudo aquilo que não pode ser contestado.
15 - Escarpaduras. Corte ou inclinação de um terreno.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de João Pessoa, na Paraíba, 13-10-2023
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