terça-feira, 31 de outubro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Relato de um distraído

Aparecido Raimundo de Souza

HOJE DE MANHÃ, antes das sete horas, como faço todos os dias ao me dirigir para o trabalho, desci para tomar meu café na padaria. Adoro este recinto. Me sinto bem, quando estou ali. Diria que tal espaço se me apresenta como uma extensão da minha própria casa. Por esta razão, chova ou faça sol, esteja frio ou um calor de quarenta graus, não abro mão de “aparecer” dando o ar da graça, por nada deste mundo. O estabelecimento em questão se situa quase frenteado ao portal do meu condomínio. Entrei, sentei ao lado do meu lugar de sempre, visto que a minha mesa preferida (a que mais gosto) se achava ocupada por uma loirinha gostosa que mora dois andares acima do meu.

Meio do café, assim, num repente, do nada, me deu uma vontade louca de soltar algumas flatulências. Achei estranho, porque antes do banho, e de me trocar, dedico algum tempo levando o bumbum para visitar o vaso sanitário, oportunidade em que aproveito para expelir todos os possíveis e futuros dissabores de um infortúnio “molestoso.” Com o traseiro colado à seringa e à disposição de um livramento de fezes suave e sem pressa, usufruo lendo no celular as principais notícias do dia me inteirando das novidades. Por esta razão, a série de puns desvairados e anômalos, me pegou meio que surpresado. 

Tocava, nesta hora, uma música alta, aliás, muito acima do normal além de chata. Geralmente o gerente não costuma colocar barulhos ensurdecedores em atenção aos frequentadores que para ali se convergem na ânsia de se confraternizarem com o primeiro dejejum. Outro motivo. Muito cedo para aquele tipo de estrondo se mostrar em volume tão deprimentemente elevado. Pois bem! Temeroso por soltar outros arrotos subversivos e atrapalhar ou chamar a atenção da minha convizinha, e claro, dos demais em derredor, fiquei, de prontidão, com a pulga atrás da orelha, pronta para entrar em ação.

A tosse anal, de fato, deu sinais encorajadores de que estava furiosa. Intransigente prometia, pelos movimentos que me obrigava a executar, logo voltaria à carga, fazendo com que eu me apresentasse publicamente de forma cruelmente arrebatadora. Não deu outra. Os gases intestinais no tubo retal vieram e se fizeram patentes. Diria, sem medo de errar, de forma poderosa e bombástica. Na verdade, ainda que quisesse, não tinha como segurar o estrago que se avizinhava. Nesta confusão desordenada, ou seja, entre a minha vontade de reprimir os atos e a insensatez desvairada dos malcheirosos exteriorizarem, e, impávidos espocarem entremeados e sem prévio aviso, ou pior, entre liberar as bombardas e deixar os incômodos se remoendo, fiquei ligado. Achei por seguro tomar uma decisão.

Aproveitei a fuzarca da canção e dar asas aos impertinentes enraivecidos e coléricos por se verem aferrolhados nos confins do canal de descarga. Olhei de soslaio.  Mirei cuidadosamente em todas as direções. Me detive mais demoradamente para a jovem acomodada do meu lado esquerdo. Na mesa que eu me sentava todos os dias. Ela se dedicava ao seu café com sofreguidão. Do meu lado direito um casalzinho (também moradores da mesma torre) enquanto esperava pelo pedido, trocava carinhos e abraços. Decidi com meus botões. “É agora, ou nunca. Foda-se o resto.”  

Pimba! Fuuuuuuuu... liberei o filho da mãe, em sincronia com a altura da música que insistia balançar o ambiente. O gasoso saiu como eu previra. Rebentando tudo. Com ele, veio aparteado, o molho da feijoada que jantara dia anterior em casa de mamãe. De quebra, igualmente misturado, um olor insuportável e fragmentado pela ingerência de ovos cozidos, sem mencionar uma apetitosa e bem temperada salada de repolhos que só a autora de meus dias sabe fazer com precisão requintadíssima. Sem falar na mistura da cerveja com vinho e alguns goles de cachaça da boa, da pura.  

Obviamente não mencionei como de fato o mau cheiro oriundo do traque inundou o ambiente. A coisa estourou impregnativamente imperioso. Por um momento fiquei aliviado pela dispensa do dito, acoplado aos aloprados instrumentos da melodia do cantor que mais berrava que cantava. Meus ouvidos estavam pandarecados. O som, realmente, arregaçava volumoso demais. Chegava a ensurdecer. Foi então que reparei que todos me olhavam com ares de poucos amigos. Ou melhor, de nenhum amigo. A jovem ao meu lado, moradora dois andares acima, se fechara numa fuça que indicava nojo, e por conta, tamponara o nariz.

O casalzinho à direita da mesa, idem. Aliás, eles saíram de perto e foram se acomodar num outro extremo da padaria, num cantão relativamente afastado. Com certeza, o maldito movimento intestinal produzira estragos. Em questão de segundos, todos os demais me encararam com raiva. Senti que poderia levar umas tapas ou até ser agredido por um freguês mais alterado em seus ânimos. O estilhaço entrou em meu nariz, como um vento forte demais. Puta que pariu! Que podridão! Senti que estava morto. Havia esquecido, claro, de me enterrar. 

Antes de pôr fim à primeira refeição e me mandar, percebi que minha calça (exatamente nas imediações dos fundilhos da minha regueifa), se encharcara molhada. Pior. Suja e abundada de um viscoso líquido. Matei a charada. Merda pura, literalmente falando. O gerente se aproximou. Cenho franzido, a tromba   amarrada, sem o sorriso de sempre. O sujeito espumava. Disse algo ao tempo em que gesticulava e me indicava a porta da serventia da casa, ou seja, a rua. Incrivelmente não ouvi uma palavra do que me endereçou. Porém, entendi seus gestos. Eles apontavam, realmente, o escancaro de acesso à avenida: “Suma” ou algo parecido deve ter bradado, sei lá. Jamais saberei.

Vituperado, e mais que isto, amedrontado, me deparei com a ponta mais degradante da situação. Eu seguia ouvindo a droga da música. O escárnio achincalhado não vinha da padaria, porém, do meu iPod que ganhara de minha irmã Lucrécia, por ocasião de meu aniversário, mês passado. Meti o meu ridículo numa máscara conspurcada e para não me ver em palpos de aranha, achei conveniente usar uma pasta cheia de documentos que carregava escondendo (ou tentando) o meu posterior deteriorado. Sai de fininho. A bela da caixa sequer se dignou a me cobrar as despesas.

Reiterou, dedo em riste, para vazar dali o mais depressa possível. Desde este dia tão significativo para meus brios, e logicamente por conta do vexame que considerei impagável, nunca mais voltei a frequentar aquele ambiente que tanto amava de paixão. Quando tinha tempo, para não perder o ônibus, dava uma volta imensa no quarteirão e saia pela alameda secundária. A minha impressão se comungava ao fato de que alguém, de dentro da padaria, a me ver indo ou voltando, motejava troçando da degradante esparrela que eu provocara.  De revoltada, a minha vanguarda, com semblante de bunda pecadora (grudada nos meus cascos), sequer ousou recomendar a nós ambos, uma nova aparição.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 31-10-2023

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Um comentário:

  1. Bunda pecadora. Interessante. Que fala e recomenda alguma coisa ao seu dono, pior ainda. Bastante criativo. Parabéns.
    Emilio Bredas Sorocaba, SP

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