Aparecido Raimundo de Souza
Meio do café, assim, num
repente, do nada, me deu uma vontade louca de soltar algumas flatulências.
Achei estranho, porque antes do banho, e de me trocar, dedico algum tempo
levando o bumbum para visitar o vaso sanitário, oportunidade em que aproveito
para expelir todos os possíveis e futuros dissabores de um infortúnio
“molestoso.” Com o traseiro colado à seringa e à disposição de um livramento de
fezes suave e sem pressa, usufruo lendo no celular as principais notícias do
dia me inteirando das novidades. Por esta razão, a série de puns desvairados e
anômalos, me pegou meio que surpresado.
Tocava, nesta hora, uma música
alta, aliás, muito acima do normal além de chata. Geralmente o gerente não
costuma colocar barulhos ensurdecedores em atenção aos frequentadores que para
ali se convergem na ânsia de se confraternizarem com o primeiro dejejum. Outro
motivo. Muito cedo para aquele tipo de estrondo se mostrar em volume tão
deprimentemente elevado. Pois bem! Temeroso por soltar outros arrotos
subversivos e atrapalhar ou chamar a atenção da minha convizinha, e claro, dos
demais em derredor, fiquei, de prontidão, com a pulga atrás da orelha, pronta
para entrar em ação.
A tosse anal, de fato, deu sinais encorajadores de que estava furiosa. Intransigente prometia, pelos movimentos que me obrigava a executar, logo voltaria à carga, fazendo com que eu me apresentasse publicamente de forma cruelmente arrebatadora. Não deu outra. Os gases intestinais no tubo retal vieram e se fizeram patentes. Diria, sem medo de errar, de forma poderosa e bombástica. Na verdade, ainda que quisesse, não tinha como segurar o estrago que se avizinhava. Nesta confusão desordenada, ou seja, entre a minha vontade de reprimir os atos e a insensatez desvairada dos malcheirosos exteriorizarem, e, impávidos espocarem entremeados e sem prévio aviso, ou pior, entre liberar as bombardas e deixar os incômodos se remoendo, fiquei ligado. Achei por seguro tomar uma decisão.
Aproveitei a fuzarca da canção
e dar asas aos impertinentes enraivecidos e coléricos por se verem aferrolhados
nos confins do canal de descarga. Olhei de soslaio. Mirei cuidadosamente em todas as direções. Me
detive mais demoradamente para a jovem acomodada do meu lado esquerdo. Na mesa
que eu me sentava todos os dias. Ela se dedicava ao seu café com sofreguidão.
Do meu lado direito um casalzinho (também moradores da mesma torre) enquanto
esperava pelo pedido, trocava carinhos e abraços. Decidi com meus botões. “É
agora, ou nunca. Foda-se o resto.”
Pimba! Fuuuuuuuu... liberei o filho da mãe, em sincronia com a altura da música que insistia balançar o ambiente. O gasoso saiu como eu previra. Rebentando tudo. Com ele, veio aparteado, o molho da feijoada que jantara dia anterior em casa de mamãe. De quebra, igualmente misturado, um olor insuportável e fragmentado pela ingerência de ovos cozidos, sem mencionar uma apetitosa e bem temperada salada de repolhos que só a autora de meus dias sabe fazer com precisão requintadíssima. Sem falar na mistura da cerveja com vinho e alguns goles de cachaça da boa, da pura.
Obviamente não mencionei como
de fato o mau cheiro oriundo do traque inundou o ambiente. A coisa estourou
impregnativamente imperioso. Por um momento fiquei aliviado pela dispensa do
dito, acoplado aos aloprados instrumentos da melodia do cantor que mais berrava
que cantava. Meus ouvidos estavam pandarecados. O som, realmente, arregaçava
volumoso demais. Chegava a ensurdecer. Foi então que reparei que todos me
olhavam com ares de poucos amigos. Ou melhor, de nenhum amigo. A jovem ao meu
lado, moradora dois andares acima, se fechara numa fuça que indicava nojo, e
por conta, tamponara o nariz.
O casalzinho à direita da
mesa, idem. Aliás, eles saíram de perto e foram se acomodar num outro extremo
da padaria, num cantão relativamente afastado. Com certeza, o maldito movimento
intestinal produzira estragos. Em questão de segundos, todos os demais me
encararam com raiva. Senti que poderia levar umas tapas ou até ser agredido por
um freguês mais alterado em seus ânimos. O estilhaço entrou em meu nariz, como
um vento forte demais. Puta que pariu! Que podridão! Senti que estava morto.
Havia esquecido, claro, de me enterrar.
Antes de pôr fim à primeira
refeição e me mandar, percebi que minha calça (exatamente nas imediações dos
fundilhos da minha regueifa), se encharcara molhada. Pior. Suja e abundada de
um viscoso líquido. Matei a charada. Merda pura, literalmente falando. O
gerente se aproximou. Cenho franzido, a tromba
amarrada, sem o sorriso de sempre. O sujeito espumava. Disse algo ao
tempo em que gesticulava e me indicava a porta da serventia da casa, ou seja, a
rua. Incrivelmente não ouvi uma palavra do que me endereçou. Porém, entendi
seus gestos. Eles apontavam, realmente, o escancaro de acesso à avenida: “Suma”
ou algo parecido deve ter bradado, sei lá. Jamais saberei.
Vituperado, e mais que isto,
amedrontado, me deparei com a ponta mais degradante da situação. Eu seguia
ouvindo a droga da música. O escárnio achincalhado não vinha da padaria, porém,
do meu iPod que ganhara de minha irmã Lucrécia, por ocasião de meu aniversário,
mês passado. Meti o meu ridículo numa máscara conspurcada e para não me ver em
palpos de aranha, achei conveniente usar uma pasta cheia de documentos que
carregava escondendo (ou tentando) o meu posterior deteriorado. Sai de fininho.
A bela da caixa sequer se dignou a me cobrar as despesas.
Reiterou, dedo em riste, para
vazar dali o mais depressa possível. Desde este dia tão significativo para meus
brios, e logicamente por conta do vexame que considerei impagável, nunca mais
voltei a frequentar aquele ambiente que tanto amava de paixão. Quando tinha
tempo, para não perder o ônibus, dava uma volta imensa no quarteirão e saia
pela alameda secundária. A minha impressão se comungava ao fato de que alguém,
de dentro da padaria, a me ver indo ou voltando, motejava troçando da
degradante esparrela que eu provocara.
De revoltada, a minha vanguarda, com semblante de bunda pecadora
(grudada nos meus cascos), sequer ousou recomendar a nós ambos, uma nova
aparição.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
31-10-2023
O Francês
Chuva ácida
Espaço confinado
Recordações de um passado que não desgruda
Vidas líquidas
Bunda pecadora. Interessante. Que fala e recomenda alguma coisa ao seu dono, pior ainda. Bastante criativo. Parabéns.
ResponderExcluirEmilio Bredas Sorocaba, SP