domingo, 22 de outubro de 2023

[As danações de Carina] Com a pulga atrás da orelha – final

Carina Bratt

AQUELA FOLHA de papel almaço totalmente branca encontrada ao acaso, me intrigava deveras. Mexia com meu imaginário. Me futricava a alma. Para que mamãe guardava ali, entre suas coisas, num lugar onde ninguém tinha livre acesso e somente eu, à procura de um simples pente para pentear meus cabelos, por mera casualidade dera de nariz arrebitado com ela? Precisava descobrir. Tinha uma necessidade quase surreal. Uma entalação que não me dava descanso. Por conta disto, do pente à bisbilhotice, um passo. Da indiscrição à curiosidade, um piscar de esbugalhos. Um pestanejar saltado para fora, saliente e curto, meio que capenga, ajudava a me deixar ainda mais entupigaitado. Por qual razão eu não deveria descambar para às raias da excitação interior que me queimava intensamente as entranhas? Eu carecia urgentemente de trazer à tona e descobrir mais alguma coisa que me levasse a deslindar aquele assunto intrigante, travesso, embaraçado, ou o atordoamento que me tirava do eixo, do foco, me afastaria do sério, e por consequência, acabaria no vácuo da dúvida, me deixando apatetada, a ver navios, e, pior, a mergulhar num caldeirão de desilusões sem volta. Final das contas acabaria vencido com os nervos em frangalhos. Eu apostava em muitas alternativas.

Todavia, um destes revezamentos se sobrepunha e não só isto, se materializava numa pessoa. Papai. Meu pai encoberto em brumas espessas. Embuçado numa máscara que não mostrava nunca o seu rosto. Falo de um semblante encoberto. Menciono, com todas as letras, um perfil invisível, totalmente apartado do mundinho de onde eu viera. Meu pai. Papai, desde que me entendia por gente, se fizera assim: enclaustrado no seu ‘não sei por qual circunstância sua mãe nunca me falou pra você’ Papai até então, se me apresentava sem fronte, sem voz, sem pernas e braços, sem alma e coração. A parte faltosa da minha história não passava de um ser de outro planeta que se deitara com mamãe e nove meses depois eu me aflorava para este mundo. Simples, a situação, contudo, difícil explicar o depois. Aquela folha branca de papel almaço, meu Deus, até quando insistiria escoltar a verdade congestionando todas as minhas indagações? Resolvi criar coragem e perguntar. Mamãe desta vez não me escaparia. Teria que me dizer a verdade. Um namorado? Talvez! Por qual motivo alguém ou eu mesmo deveria ser contra? Ela tinha todo o direito de ser feliz. Amiga, ou melhor, amigas, não entravam no rol. Conhecia todas como a palma das mãos.

Também se faziam apartados a tia Zilá, tia Judite e tio Eduardo... mesmo saco de gatos latindo, o tio Américo e a vó Dulcinha e o vô Tibério. Resolvi dar um basta. E ia ser agora. Sem mais delongas. Corri à cozinha. A vó Dulcinha me disse que a mãe se fazia ao largo, sentada no lugar de sempre. Saí no encalço dela. O caminho, por todo o comprimento da quinta, ziguezagueava à minha dianteira com as mesmas curvinhas de quando eu tinha cinco para seis anos. Vez em quando, se condensava de pouca largura e ‘desconservado.’ Os dias de abandono (de todos os que ali habitavam), deixavam claro que a natureza havia reconquistado os seus direitos. Gradativamente à maneira que lhe fora ofertada pelo Criador, delineava aos bocados poucos, restaurando seu estado original. Mamãe, de fato, se fazia acomodada na mureta de um velho poço abandonado. Me aproximei devagar. Ela chorava:

— Mamãe...
Ela se voltou tentando esconder uma foto antiga, afixada num papel descolorido e quase sem brilho. Perguntei, de chofre:
— Mamãe, você está chorando? Quem é a pessoa nesta foto?
Em seu próprio socorro optou por desconversar. Diante da minha insistência, obviamente se sobrepondo à rebeldia do meu assédio, resolveu se abrir de vez e esmiudar toda a verdade:
— E meu pai, não é? Fala, mãe. Eu preciso saber. Por favor!
Fustigada pelo pranto incontrolável, me abraçou mostrando a imagem:
— Sim. É ele. Seu pai. Meu velho.
— E onde está? Por qual motivo nunca veio me visitar?
— Quer mesmo saber a verdade?
— Sim, mãe. Toda ela. Por favor, não me esconda mais...

— Seu pai se matou se atirando neste poço. Tinha a próstata comprometida por um câncer incurável, e, por conta, se abateu em forte depressão. Na noite de Natal, ele saiu da sala no momento em que comemorávamos a data, e, de roldão, seu nascimento... você tinha dois dias que havia chegado comigo da maternidade. Seu pai (que fora junto), não lhe registrou exatamente por conta das comemorações natalinas.
— Nossa, mãe. Que triste. E a folha de papel almaço em sua gaveta? Um novo alguém? Um namorado? Se abre...
Mamãe me encarou, os olhos cobertos em lagrimas abundantes:

— Sabia que um dia a encontraria. Estamos quase às portas do Natal. E do seu aniversário. Todos os anos, desde então, eu escrevo uma carta para meu velho. Para seu pai. E trago aqui. Converso com ele, depois faço uma oração, choro muito e, ao final, a atiro ao fosso o que escrevi. Se você chegasse um minuto antes, teria me flagrado. ‘Fazem’ vinte e cinco anos (a sua idade) que me agarrei a este ritual. E acredite: jamais deixei a data passar em brancas nuvens.

Título e texto: Carina Bratt. De Ribeirão Preto, interior de São Paulo, 22-10-2023

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