domingo, 17 de setembro de 2023

[As danações de Carina] A eterna magia do engano

Carina Bratt

‘O amor é lindo. O que estraga a união entre dois seres distintos é um deles não conhecer a sua cara-metade em todo o seu interior, notadamente quando ela não está com a máscara da falsidade estampada em torno da sua real personalidade.’
Pachá (Morador de rua, Bonsucesso, Rio de Janeiro)

Para Rafaela de Castro, seu pai, o tenente Altamiro e a pequena e graciosa Érica.

NÃO HAVIA quem dissesse que aquele lindo casalzinho não se amasse loucamente. Onde um estivesse, o outro, com certeza, estaria ao lado. Eram como unha e carne, duas almas vivendo uma vida em comum, começo de jornada à dois, sem problemas a enfrentar, sem filhos para encher o saco, enfim, um mundo magnificante se descortinava aos olhos daqueles pombinhos recém saídos dos pés do padre Anselmo, prontos para abraçarem o mundo, e tudo o que ele oferecia de bom.
Rafaela contava apenas dezenove anos, mas a cabeça, com certeza, de mulher adulta. Sabia exatamente o que queria e brigava pelos objetivos. Eduardo, recém formado médico ginecologista, lutava para montar um consultório, ainda que fosse humilde, mas que desse para atender condignamente as suas futuras clientes. O pai da moça, o velho tenente Altamiro, viúvo, cônscio da saída da filha única do lar materno, achou pôr bem presentear a herdeira com uma casa. Assim, dias antes do casamento, entregou aos noivos as chaves e a escritura definitiva em nome de ambos; um apartamento confortável num prédio não muito longe de sua residência.

No fundo, esse pai, só queria ter a filha por perto, embora a considerasse bastante adulta, resolvida, com os pés no chão. De igual forma, apta para enfrentar a vida ao lado de um homem que conhecera seis meses atrás. Temia, porém, o pior: achava que algo não daria certo. Pensava que o ‘amor repentino’ dos dois jovens, num piscar de olhos, sofreria uma transformação, e, por essa razão, acabaria tudo à beira de um colapso grandioso. Achava também que logo, cada um deles partiria para um esfriamento momentâneo e definitivo.

Ele queria, pois, nessa hora, estar por perto, como um anjo protetor, como um pai cativo e conscio da sua responsabilidade. Queria, mesmo lado do coração, estar com os sentidos em alerta, atento, vigiando cada passo, cada saída, cada volta. Queria, outrossim, estar bem próximo mesmo, para resgatar a filha e a trazer para junto de seu eterno amor incondicional de guardião. Não deu outra. Mêses à frente, o rapaz se transformou da água para o vinho. Se viu mandado embora do hospital onde trabalhava, por uma série de motivos.

O pior deles, por desrespeitar as suas pacientes, a ponto de algumas abrirem processos criminais em face de, nas consultas, serem molestadas sexualmente. Em paralelo, o sujeito passou a chegar bêbado em casa, a espancar a esposa, a ponto de, numa dessas investidas, a criatura carecer ser levada às carreiras por vizinhos à uma unidade de emergencia; o rosto e demais partes do corpo, todo estropiado, em decorrência, obviamente, das surras e outras agressões sofridas.

O pai, ao tomar conhecimento de tais atos, achou por bem dar uma chance ao ‘genro.’ Foi ao encontro dele e expôs as suas ponderações e receios. Eduardo ouviu tudo, fez promessas, pediu perdão. Uma semana depois Rafaela voltou a ser brutalmente espancada, a ponto de parar na UTI. Enraivecido, o pai saiu no encalço do infeliz. Ao encontra-lo num bar proximo de onde ficava o apartamento trocaram uma chuva de farpas seguidas de palavras de baixo calão, culminando, a contenda, com Eduardo agredindo friamente o pai de sua esposa.

Extremamente machucado, o rosto inchado e sangrando, o cidadão Altamiro não se fez de rogado. Voltou à sua casa. Se armou de um trinta e oito e voltou ao estabelecimento onde fora barbaramente afrontado e humilhado. Enraivecido e fora de si, sem mais perca de tempo, puxou da arma e descarregou toda a munição, mandando o rapaz metido a valente, para os quintos do inferno. Fugiu do flagrante, se apresentando depois, com advogado. Processo tramitou normal. Final dele, muito justo, absolvido.

Antes do doutor Eduardo ir de mala e cuia, com passagem só de ida para morar na mansão com seu compadre capiroto, é bom deixar registrado um pequeno pormenor. No velório do defunto (somente se fez presente a mãe dele). Para alegria dos demais, um final feliz. A Rafaela trouxe ao mundo uma linda menina. Hoje, a pequena Érica é o xodó inseparável do avô.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 17-9-2023

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