domingo, 13 de agosto de 2023

[As danações de Carina] Dentre guardados

Carina Bratt 

Enquanto corri feito menino atrás do arco-íris, a vida escorregou sem cerimônias.
Daniel Maurício – do livro ‘Olhares’ Ed. Do autor, Curitiba Paraná 2021.

LIMPANDO AS ESTANTES do meu pequeno mundo onde vivo longe das calçadas da avenida movimentada, ou mais precisamente onde estão expostos ao meu prazer de leitora assídua os livros que considero os preferidos, ao tirar alguns volumes de Fernando Sabino para passar um pano e remover a poeira, encontrei uma caixa de sapatos. Tenho esta mania meio que ‘adoidada’ de guardar coisas escudadas por entre autores os mais diversos. Passei os cinco dedos nela. Voltei com o Fernando Sabino aos demais títulos da sua enorme coleção.


O que eu havia acondicionado dentro daquela embalagem (se não me engano), de um par de botas que fazia tempo havia comprado? Só abrindo para ver. — ‘A curiosidade — dizia meu velho pai —, matou o gato.’’ E agora eu comprovaria a sua veracidade com todas as letras. Só que não seria um gato. No lugar dele, uma gata. Euzinha! Ao abrir, pequenas lembranças do meu ontem distante se espalharam pelo ambiente. O primeiro dente aos quatro para cinco anos, numa sacolinha de plástico, as pedras que tirei da vesícula, menos a vesícula, logicamente.

Uma correntinha de ouro com um coração, presente de uma tia falecida também se fazia ali. Um pacotinho com antigos cartões telefônicos dos orelhões, uma carta que escrevi para papai no dia em que ele foi parar no hospital, uma foto dele com mamãe. Me detenho nela demoradamente. Um ‘mimo’ que ficou para sempre, e, agora, tantos janeiros depois, a revejo com saudade grandiosa. As lágrimas rolam em meus olhos. Mamãe, de vestido de gala branco, ao lado de meu pai, composto num terno e gravata como ele costumava dizer, ‘nos trinques.’

Ao fundo, engalanando o visual, a igreja antiga de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte. Choro sozinha, com vontade, até que o meu celular, insistente, se torne uma incomodação chata para os ouvidos da qual precise me livrar com certa urgência. É a Deusa que chegou na portaria. Havia me esquecido dela. Ligou na quinta, por volta do meio-dia, anunciando que hoje, domingo pela tarde, traria o namorado que conhecera. Com a chegada dela, autorizo seu Luiz, o porteiro que a deixe subir. Em antecipação, escancaro a porta da sala e espero, enquanto enxugo o pranto e vigio o corredor dos elevadores.

Enquanto aguardo, me vem à memória que fazia um tempo enorme, não via aquela carta que escrevera a meu pai. Tampouco a foto dele com mamãe. Um pedacinho de papel amarelado, que do nada, me fez voltar correndo aos idos da infância distanciada pelo passar dos imprevistos e contratempos. O meu ontem de mocinha também se dissipou. Os áureos tempos que não voltam dos responsáveis pelos meus dias, de mãos dadas. O sorriso alegrando o rosto cálido e brejeiro de mamãe... a sua juventude tomando conta do jovial, sem uma pontinha de qualquer ruga precoce... papai, ao lado dela, imponente, os olhos ávidos, quem sabe pensando na nova mudança que faria em vista de viver grudado às fileiras do exército.

O quartel, para ele, deveras sagrado. Tanto quanto a família. E a Deusa com a nova conquista? Será que desistiram? Impossível! A Deusa, neste quesito da palavra empenhada se fazia severa. Se dissesse (como disse) que viria, desistir da empreitada, não comungava nem um pouco nos planos dela. E por qual motivo não pintava aportando no meu andar? Neste interregno de espera, melhor seria não ter atendido o telefone. Quem sabe ficado com as minhas relíquias, papai, mamãe, o dente, os cartões, a correntinha... os devaneios entristecidos dos anos longevos... qual o quê! Por boa educação recebida de berço, e, igualmente solidária à minha amiga, não desistiria justo agora. Por nada.

Seria fácil não atender. Entretanto, a minha postura, entrelaçada aos aprendizados recebidos de meu velho, não me deixariam em paz. A melhor amiga estava vindo... subindo... nesta andança do campeonato, deixá-la a ver aviões cortando o céu no corredor solitário do vigésimo andar do meu prédio, seria imperdoável. Eis que a pessoinha, um sorriso maroto de canto a canto do rosto dá sinais de vida. Trocamos beijos, abraços, e finalmente sou apresentada ao rapaz. Lembra Machado de Assis pelas fotos de seus livros. Cabelo, bigode e barba em abundância. Olhos pretos muito vivos e penetrantes.

Se tivesse vivido entre 1839 e 1908 e não fossem pela ausência dos ‘piscines’ na ponta do nariz, eu diria que se assemelharia ao criador de ‘A Mão e a Luva’, obviamente, sem elas. Convido os pombinhos para que entrem e se acomodem no sofá de canto da sala. Batemos um papo introdutório, trocando figurinhas as mais diversas. Boris é o nome do cidadão. Prefere a minha rede na varanda, enquanto eu e a Deusa nos atemos na cozinha ao preparo de um lanche que, na véspera, providenciei para recebê-la junto com o novo cobertor de orelhas.
— Gostei dele, amiga. Alegre, um tanto meio caladão... e aí?
— Foi amor à primeira trombada de nossos patins no calçadão da Borges de Medeiros...

O papo com a Deusa e o Boris, durou uma eternidade. A amiga ficou até as dez da noite. Não tive como continuar com as tristezas da minha caixinha de sapatos. Enquanto comíamos e trocávamos impressões as mais variadas, fui devolvendo mentalmente o que havia retirado de dentro das recordações adormecidas. Como havia estancado o choro, achei melhor trocar as tristezas e sorrir. Aos poucos, me refiz. Tão logo a amiga se foi, coisa de meia hora depois, o Aparecido ligou convidando para uma pizza. — ‘Te pego aí, ou você vem para o décimo’? — ‘Você decide — respondi sorrindo. — Ei, na verdade, prefiro que você me pegue aqui.’’

Quando meu patrão chegou e escancarou a porta da sala (ele tem a senha de acesso), um vento chicoteou a varanda balouçando fortemente a minha rede. Em dado momento enrolou as saias do meu vestido em torno de minhas pernas. Uma lufada mais forte arrancou a fita cor de rosa que segurava os meus cabelos penteados a longa trança para trás. Com isto, eles se soltaram e esvoaçaram em derredor de Aparecido, como uma luz muito forte e benfazeja, se mostrando a mim, tipo um anjo encantado vestido de FELICIDADE.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 13-8-2023 

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