terça-feira, 22 de agosto de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Babuchas de camurça

Para: Marlucia Loureiro de Melo 

Aparecido Raimundo e Souza 

TENHO UMA SAUDADE IMENSA dos nossos tempos de outrora, quando você, na flor da idade, veio trabalhar comigo como minha secretária.  Acordando a consciência de uma torpeza frustrante, depois de ter olhado todo o caminho percorrido, como se meus olhos, até então, estivessem cobertos por nuvens de matizes diáfanos, me lembrei nitidamente de seus cabelos compridos, esvoaçando ao sabor de um vento ameno e prazeroso. Também aproveitei a saudade e refiz seu rosto. Vi nele a cútis bem torneada, a pele ainda como a de uma princesa saída de um conto de fadas, a voz maviosa e calma, fluída de uma boquinha pecaminosa, sem falar no olhar penetrante e enigmático que me fitou por inteiro fascinando todos os meus sentidos até então desprovidos de algo deleitoso e afável. 

Não queria dizer, mas, em devaneio, fui em busca daquele sorriso avassalador e dominante que me cativou desde a primeira vez. Era um sorriso doce e inocente, que se delongou por muitos e muitos anos. E eu, embevecido e sem modos, movido por uma escolha inusitada, como uma espécie de lacuna não preenchida, me debrucei sobre seu corpo escultural e me atirei a ele com uma sofreguidão irrefletida, como um jogador exímio chutando a bola em direção à rede em busca do gol da vitória. Alegre e saltitante, naquele exato momento me senti como se tivesse cavado uma fenda perto da linha do órgão do olfato e enfiasse, no orifício do nariz (grosso modo), de forma proativa, uma pena de papagaio. 

Uma coceira fugaz e delirante se alastrou desde então, e, até hoje, quando me lembro, me ponho a coçar uma urticária inexistente, que não passa e nem estanca a saudade de você. Da nossa união tão breve, nasceram Amanda e Luana. Amanda, vinte e tantos anos atrás, representou (e logicamente, ainda representa) o meu começo de tudo, já que os outros filhos, não se fizeram presentes por questões pessoais, e, sobretudo, por brigas entre eu e as respectivas ex-consortes. Dois anos depois, veio a Luana, quando em São Paulo fomos cuidar da saúde de Amanda. Uma nova criança coroou do nada e me fez completa a vontade de continuar vivendo. Houve uma série de relâmpagos riscando o céu, e, pela primeira vez, me senti galgando os degraus do infinito. 

Subindo às carreiras em direção às estrelas, me pus em campo, como se tivesse, ao alcance das mãos, a escada que me levaria a contemplar tantas luas em mundos até então nunca visitados. Fazia pouco tempo Narjara se afastara, bem como o Eduardo. Aliás eles nunca se fizeram reais dentro do meu imaginário, e pior, viveram vagueando por percalços mal construídos desde tenra idade, obstruídos por urbes diferentes, apartados, divorciados completamente da minha possibilidade de tentar ser pai. Assim, entre idas e vindas, tropeços e contrariedades, atravancos e rebordosas ciclópicas, alimentei a minha vidinha medíocre, a maior parte dela graminhando por sendas inapagáveis e errantes repletadas de trilhas tortuosas e sem escalas de uma rota sucinta onde uma possível parada me fizesse chegar às raias do sucesso almejado. 

Com as duas mocinhas recém-chegadas, hoje entendo, não precisava ter ido embora. Porém, desmiolado, a cabeça vazia, o cérebro literalmente congelado, talvez com todas as terminações nervosas monomaniacadas, e, em estado crítico e letárgico, um certo dia, fragmentado interiormente e incompleto em matéria de pensar em um futuro promissor, larguei tudo às expensas do fortuito e bati asas ao acaso de uma insanidade tresloucada, indo embora de mala e cuia para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. E você com as crianças, de repente viraram uma espécie de poeira herética diante de meus desequilíbrios mais contundentes e paranoiados. Quando voltei, não sabendo precisar “quantos depois”, subjugado aos destroços deixados, recordo que só a Amanda me reconheceu e se achegou. 

Luana, contudo, se prostrou indecisa, séria e destoada num ostracismo temeroso que até hoje perdura. Eu sei, não deveria ter deixado as minhas raízes, o meu chão seguro, o porto onde todas as noites atracava meus devaneios de um porvir esperançoso e menos causticante e abochornado. Em dias atuais, na casa dos setenta, a minha peleja contra o passado destruído é a mesma com relação a própria reconstrução pessoal, mormente o desejo de afastar para o longínquo, o silêncio frio e acabrunhado que me seguiu desde as distancias mais ancestrais. As minhas raízes morreram de uma doença desconhecida. O chão seguro virou um buraco enorme no deserto do intransponível. 

No antigo porto, outras embarcações atracaram e fincaram âncoras no submerso de um profundo cavernoso. Em meus dias de agora, se achegam, vindos de um passado meio que intransigente e desmesurado, algo catastrófico e insólito. Acredito ser, e, de fato é, uma espécie rara de dor ingente, latente e literalmente pegajosa. Ela me desgasta e me emagrece os vindouros que ainda me restam para serem vividos. Você não tem culpa. As “Nossas Barriguinhas Amanda e Luana” também não. Na época, em que escolhi o incerto da jornada duvidosa, o futuro de um porvir sem méritos, não me deixou ver adiante. Pelo deslize, não sabia, ou não tinha noção da burrice que fazia.  Hoje, envelhecido não só na idade, atalhado no mais vetusto da alma, entendo não ter como reparar os atos desconexos praticados desde então. 

Se pudesse fazer um discurso, não alcançaria o mesmo sucesso de Brooke Shields nos derradeiros minutos antes do caixão de Michael Jackson descer à sepultura. A meu entender, uma perca de tempo. Mesmo pisar de rastros incertos, seria chover no molhado. Usque tentar rever o abandono abissal em que lhe deixei, como uma coisa inóspita. Em idêntico tom, fazer sorrir meigamente aquele tempo em que você dormia comigo no chão frio de um escritório, oportunidade em que cultuava um amor indócil e profundo e que da mesma maneira brutal e impensada, tudo fiz para destruir o seu pedestal atingindo o âmago cípio da desgraça incongruente. Infelizmente, naqueles idos, logrei êxito.  Diante de tal impulso, seu amor real acabou em tristezas. Nossos sonhos de um presente que não floresceu, se quedaram num redemoinho gigantesco como se voltássemos ao périplo do degradante recomeço. 

Com ele, de roldão, se foi, uma manhã risonha que não conseguiu seguir adiante e feneceu tripudiada nas garras de uma tristeza advinda de um ontem que insistiu permanecer. Por conta de todos os entreveros, daquela menina pura e inocente, cheia de sonhos dourados, vejo hoje que seus cabelos mudaram de cor. Ficaram mais esbeltos. Acredite, ainda neste instante os vejo como dantes. Seu rosto bem torneado se adultou. Vivificou esplendorosamente numa transformação mais maturada e coesa. A voz maviosa e calma estrondou além das portas que fechei às aldravas de sete chaves, quando sai em busca de um “não sei o quê.” A sua boquinha pecaminosa também sofreu transformações. Mesma forma, o seu olhar penetrante e emblemático. 

Apesar da passagem dos anos, você seguiu e se fez radiosa aos meus sentidos. Naqueles dantes hoje desarmonizados, você encantava de felicidade todos os meus recantos vazios de algo promissor e ensoberbecido. Por incrível que pareça, este pormenor afincou e se perpetuou na minha contemplação a você. Hoje, seu olhar (eu sinto) hoje seu olhar se esvai um tanto baço. Sequer sente um pingo de compaixão para aplacar a intensidade do vazio que carrego dentro do coração. Não obstante, você se elege na eterna magia de sorrir como em nosso tempo (e por mais que os anos passem) esta candura pavoneia, se entufa e não retroage. Pois bem! Revivendo toda a trajetória insana pela qual fiz você passar, não posso dizer que não ficou nada de bom. Claro que ficou. 

No “tudo-pouco” que consegui resgatar do fundo do abismo, algo imarcescível sobrou pelas graças do Pai Maior. Em face disto, de uma maneira meio que perturbadora, posso me redimir, e, creia, todos os dias, tento. Dentro de mim, experimento o alívio da resignação. Não em toda a sua totalidade, verdade seja dita. De forma atemporal, procuro afastar o vazio mórbido, a solidão enfermiça, o escuro combalido e mazelento que fiz frutificar dentro de meu ser. “Nossas Barriguinhas”, Amanda e Luana nos deram, de presente, João Eduardo e Heitor. Ao menos, levo na alma, num lugarzinho secreto, o amor de Amanda, o carinho ímpar da Luana e os sorrisos inquestionáveis dos nossos netos João Eduardo e Heitor. Me perdoa, Marlucia, se não fui o príncipe encantado que você tanto sonhou. 

Em contrário, você se emoldurou na princesa que eu nunca pensei ter ao alcance da sorte, quando ela me sorriu. Embora tenha tido esta bem-aventurança ao alcance das mãos, não soube aproveitar. Não se censure. “Mea-culpa”. A imbecilidade galopante foi minha, e, hoje pago o alto preço de um ontem esmagado que me atormenta e me definha bem devagarinho. Diria, sem medo de errar, lentamente e aos poucos, num fadário funesto que seguirá, com certeza, além-partida quando me for embora daqui. A alegria de poder ver você, ainda que obstruído por visões opostas, é como uma doença sem cura. Uma inópia em fase terminal, embora alimente, ad aeternum um talvez penurioso e sem futuro, que me traga, sobejamente, a cicatrização para a alma em frangalhos. Pequenos sorrisos vindos de você conseguem me desviar da rota de colisão com o andar de cima, e, por isto, no meu peito, o garbo sutil de uma vaidade adormecida insista em continuar seguindo em aceleração descomedida.   

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 22-8-2023

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