terça-feira, 29 de agosto de 2023

[Livros & Leituras] A 25ª hora

C. Virgil Gheorghiu, livros Unibolso – Editores Associados, Lisboa, 1950, 330 páginas.

Iohann Moritz é um camponês romeno que, em meio à guerra, vê-se reduzido à sua dimensão social: homens deixaram de ser indivíduos e se tornaram simples membros de categorias.

Denunciado como judeu, embora não o fosse, por um gendarme que lhe cobiça a esposa, Moritz cai nas mãos dos nazistas e inicia um périplo pelos mais diversos campos de concentração da Europa. Ao fugir com outros detentos para a Hungria, país “onde a vida é menos dura para os judeus”, acaba detido como espião romeno e é torturado. Deportado para a Alemanha, na condição de “trabalhador húngaro voluntário”, é examinado por um médico nazista que o considera um espécime excepcional da linhagem ariana.

Dessa malha inextricável e sombria, sobressaem personagens tocantes, como Suzanna, a primeira esposa de Iohann, Eleonora West, editora e dona do jornal mais importante da Romênia, Alexandru Koruga, padre ortodoxo e pai do escritor Traian Koruga, intelectual e romancista amigo de Iohann Moritz, que também narra a história, numa espécie de livro dentro do livro.

Li-o entre 1965 e 1967, no Porto, Portugal. Talvez esta mesma edição que acabo de reler. Encomendei este exemplar num sebo online “Esconderijo de livros

Pois bem, como já disse, acabo de o reler, 73 anos após a primeira edição. Julgo ter ficado agora bem mais impressionado de quando da minha primeira leitura, na adolescência.

É um livro dramático, não só pelas dores e tormentos que narra, mas também pelo seu… caráter profético.

(…)

— Por que fala tudo isso? — perguntou Traian. — Seria melhor se descansasse.

— Tem razão — concordou o padre Koruga. — Mas quero lhe dizer ainda uma coisa. Saiba, Traian, que a vida nunca tem uma finalidade objetiva, a menos que assim designemos a morte: todo fim real e verdadeiro é subjetivo. A Sociedade Técnica ocidental quer conferir uma finalidade objetiva à vida. É o melhor meio de destruí-la. Eles reduziram a vida a uma estatística. Mas: toda estatística deixa escapar o caso único em seu gênero e, quanto mais evolui a humanidade, mais será, precisamente, a unidade de cada indivíduo e de cada caso particular que contará.

A Sociedade Técnica progride exatamente no sentido inverso: ela generaliza tudo. Foi em virtude de tanto generalizar e procurar, ou inserir todos os valores no que é geral, que a humanidade ocidental perdeu todo sentido para os valores do único e, portanto, da existência individual. Daí o imenso perigo do coletivismo, seja à moda russa ou americana.

E é justamente por causa disso que podemos ter a certeza de que essa Sociedade ir desmoronar. Aliás, você mesmo falava isso uma noite em Fântâna. A Sociedade da civilização técnica tonou-se incompatível com a vida do indivíduo. Ela sufoca o homem. E os homens morrem da mesma morte que os coelhos brancos do seu romance. Morremos todos asfixiados pela atmosfera tóxica dessa Sociedade, em que só podem mover-se Escravos Técnicos, Máquinas e Cidadãos exatamente como você pretendia expor no seu livro. Os homens pecam assim gravemente e são culpados perante Deus. Impetuosamente, agimos contra o nosso próprio bem e, acima de tudo, contra Deus. Estamos no último degrau de decadência jamais alcançado por uma Sociedade humana. E essa Sociedade perecerá como pereceu até agora tantas e tantas Sociedades ao longo da história e antes mesmo que a história começasse.

Os homens tentam salvar essa Sociedade recorrendo a uma ordem lógica, ao passo que é justamente essa ordem que a mata. Eis o crime da Sociedade Técnica ocidental. Ela mata o homem vivo — sacrificando-o à teoria à abstração, ao plano. Esta é a forma moderna do sacrifício humano. A fogueira e os autos de fé foram substituídos pelo escritório e a estatística — os dois mitos sociais atuais em cujas chamas se consuma o sacrifício humano. A democracia, por exemplo, é uma forma de organização social nitidamente superior ao totalitarismo, embora represente apenas a dimensão social da vida humana. Confundir democracia com o sentido próprio da vida é matar a vida do homem e reduzi-la a uma única dimensão. Este é o grande pecado, comum aos nazistas e comunistas.

A vida humana só adquire sentido se tomada e vivida em seu conjunto. E para apreender o sentido último da vida, temos de empregar as mesmas ferramentas que utilizamos para compreender a arte e a religião: as ferramentas da criação artística, as ferramentas de toda criação. Na descoberta desse sentido último da vida, a razão tem papel meramente secundário. A matemática, a estatística e a lógica têm o mesmo efeito para a compreensão e organização da vida humana que para o entendimento de um concerto de Beethoven e Mozart. Mas a Sociedade Técnica ocidental teima em alcançar a compreensão de Beethoven e Rafael por meio de cálculos matemáticos. Teima em compreender a vida humana e melhorá-la por meio da estatística.

Essa tentativa é igualmente absurda e dramática. Com esse sistema, o homem pode alcançar, no melhor dos casos, o apogeu da perfeição social. Mas isso não o ajuda em nada. A própria vida do homem cessará de existir a partir do momento em que se vir reduzida ao social, ao automático, às leis da máquina. Essas leis jamais poderão dar sentido à vida humana. E se roubamos o sentido da vida — o único sentido que ela possui e que é totalmente gratuito e transcende a lógica —, então a vida mesma termina por morrer. O sentido da vida é absolutamente individual e íntimo.

A Sociedade contemporânea já repudiou há muito tempo essas verdades e, a uma velocidade vertiginosa, com a força do desespero, envereda por outros caminhos. É por isso que, nos dias de 

hoje, as águas do Reno, do Danúbio e do Volga carregam lágrimas de escravos. Essas mesmas lágrimas encherão o leito de todos os rios da Europa e de todos os rios da terra, até que mares e oceanos transbordem toda a amargura dos homens escravos da Técnica, do Estado, da Burocracia, do Capital. No fim, Deus terá piedade do homem — como já o fez inúmeras vezes. Então — como a arca d Noé no dilúvio — os poucos homens que terão permanecido homens flutuarão por sobre os vórtices desse grande desastre coletivo. E é graças a eles que a raça humana será salva, como já o foi em diversas ocasiões ao longo da história.  Mas a salvação só virá para os homens que são verdadeiramente homens, isto é, indivíduos. Dessa vez, não serão as categorias que serão salvas.

Nenhuma Igreja, nenhuma nação, nenhum Estado e nenhum continente poderá salvar seus membros em massa ou por categorias. Apenas os homens, tomados individualmente, sem levar em conta sua religião, raça ou categorias sociais ou políticas às quais pertencem, poderão ser salvos. Eis por que o homem jamais deve ser julgado pela categoria a que pertence. A categoria é a aberração mais bárbara e diabólica jamais concebida pelo cérebro do homem. Não convém esquecer que o nosso inimigo é, ele também, um homem, e não uma categoria.

Traian Koruga aproveitou a pausa para perguntar com uma voz receosa:

— Pai, por que me explicar tudo isso agora? Talvez seja melhor descansar…

— É o que farei. Descansarei. Contudo, antes do repouso, eu precisava lhe dizer essas coisas. Você as conhece e sente como eu. Todo homem as sente e conhece. Iohann Moritz também as sente. Mas me faz bem repeti-las. Eu não conseguiria descansar se não as proferisse antes.

— Sua mão está fria, pai.

(…)

Nota: Copyright ©PLON, 1990

Traduzido da edição francesa (La Vingt-Cinquème Heure)

PREPARAÇÃO
Suelen Lopes

REVISÃO
Carolina Rodrigues

REVISÃO DE EPUB
Fernanda Neves

GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca

E-ISBN

978-85-8057-555-2Edição digital: 2014Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrínseca Ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 Gávea, Rio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400

www.intrinseca.com.br

Em 2023, agosto, existem no Brasil muitos Iohann Moritz vítimas de um outro Nicolae Dobresco, 2º sargento… 




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