C. Virgil Gheorghiu, livros
Unibolso – Editores Associados, Lisboa, 1950, 330 páginas.
Iohann Moritz é um camponês romeno que, em
meio à guerra, vê-se reduzido à sua dimensão social: homens deixaram de ser
indivíduos e se tornaram simples membros de categorias.
Denunciado como judeu, embora
não o fosse, por um gendarme que lhe cobiça a esposa, Moritz cai nas mãos dos
nazistas e inicia um périplo pelos mais diversos campos de concentração da
Europa. Ao fugir com outros detentos para a Hungria, país “onde a vida é menos
dura para os judeus”, acaba detido como espião romeno e é torturado. Deportado
para a Alemanha, na condição de “trabalhador húngaro voluntário”, é examinado
por um médico nazista que o considera um espécime excepcional da linhagem
ariana.
Dessa malha inextricável e
sombria, sobressaem personagens tocantes, como Suzanna, a primeira esposa de
Iohann, Eleonora West, editora e dona do jornal mais importante da Romênia,
Alexandru Koruga, padre ortodoxo e pai do escritor Traian Koruga, intelectual e
romancista amigo de Iohann Moritz, que também narra a história, numa espécie de
livro dentro do livro.
Li-o entre 1965 e 1967, no Porto,
Portugal. Talvez esta mesma edição que acabo de reler. Encomendei este exemplar
num sebo online “Esconderijo de livros”
Pois bem, como já disse, acabo de o
reler, 73 anos após a primeira edição. Julgo ter ficado agora bem mais
impressionado de quando da minha primeira leitura, na adolescência.
É um livro dramático, não só pelas
dores e tormentos que narra, mas também pelo seu… caráter profético.
(…)
— Por que fala tudo isso? — perguntou Traian. — Seria melhor se descansasse.
— Tem razão — concordou o
padre Koruga. — Mas quero lhe dizer ainda uma coisa. Saiba, Traian, que a vida
nunca tem uma finalidade objetiva, a menos que assim designemos a morte: todo
fim real e verdadeiro é subjetivo. A Sociedade Técnica ocidental quer conferir
uma finalidade objetiva à vida. É o melhor meio de destruí-la. Eles reduziram a
vida a uma estatística. Mas: toda estatística deixa escapar o caso único em seu
gênero e, quanto mais evolui a humanidade, mais será, precisamente, a unidade
de cada indivíduo e de cada caso particular que contará.
A Sociedade Técnica progride
exatamente no sentido inverso: ela generaliza tudo. Foi em virtude de tanto
generalizar e procurar, ou inserir todos os valores no que é geral, que a
humanidade ocidental perdeu todo sentido para os valores do único e, portanto,
da existência individual. Daí o imenso perigo do coletivismo, seja à moda russa
ou americana.
E é justamente por causa disso
que podemos ter a certeza de que essa Sociedade ir desmoronar. Aliás, você
mesmo falava isso uma noite em Fântâna. A Sociedade da civilização técnica
tonou-se incompatível com a vida do indivíduo. Ela sufoca o homem. E os homens
morrem da mesma morte que os coelhos brancos do seu romance. Morremos todos
asfixiados pela atmosfera tóxica dessa Sociedade, em que só podem mover-se
Escravos Técnicos, Máquinas e Cidadãos exatamente como você pretendia expor no
seu livro. Os homens pecam assim gravemente e são culpados perante Deus.
Impetuosamente, agimos contra o nosso próprio bem e, acima de tudo, contra
Deus. Estamos no último degrau de decadência jamais alcançado por uma Sociedade
humana. E essa Sociedade perecerá como pereceu até agora tantas e tantas
Sociedades ao longo da história e antes mesmo que a história começasse.
Os homens tentam salvar essa
Sociedade recorrendo a uma ordem lógica, ao passo que é justamente essa ordem
que a mata. Eis o crime da Sociedade Técnica ocidental. Ela mata o homem vivo —
sacrificando-o à teoria à abstração, ao plano. Esta é a forma moderna do
sacrifício humano. A fogueira e os autos de fé foram substituídos pelo
escritório e a estatística — os dois mitos sociais atuais em cujas chamas se
consuma o sacrifício humano. A democracia, por exemplo, é uma forma de
organização social nitidamente superior ao totalitarismo, embora represente
apenas a dimensão social da vida humana. Confundir democracia com o sentido
próprio da vida é matar a vida do homem e reduzi-la a uma única dimensão. Este
é o grande pecado, comum aos nazistas e comunistas.
A vida humana só adquire
sentido se tomada e vivida em seu conjunto. E para apreender o sentido último
da vida, temos de empregar as mesmas ferramentas que utilizamos para
compreender a arte e a religião: as ferramentas da criação artística, as
ferramentas de toda criação. Na descoberta desse sentido último da vida, a
razão tem papel meramente secundário. A matemática, a estatística e a lógica
têm o mesmo efeito para a compreensão e organização da vida humana que para o
entendimento de um concerto de Beethoven e Mozart. Mas a Sociedade Técnica
ocidental teima em alcançar a compreensão de Beethoven e Rafael por meio de
cálculos matemáticos. Teima em compreender a vida humana e melhorá-la por meio
da estatística.
Essa tentativa é igualmente
absurda e dramática. Com esse sistema, o homem pode alcançar, no melhor dos
casos, o apogeu da perfeição social. Mas isso não o ajuda em nada. A própria
vida do homem cessará de existir a partir do momento em que se vir reduzida ao
social, ao automático, às leis da máquina. Essas leis jamais poderão dar
sentido à vida humana. E se roubamos o sentido da vida — o único sentido que
ela possui e que é totalmente gratuito e transcende a lógica —, então a vida
mesma termina por morrer. O sentido da vida é absolutamente individual e
íntimo.
A Sociedade contemporânea já
repudiou há muito tempo essas verdades e, a uma velocidade vertiginosa, com a
força do desespero, envereda por outros caminhos. É por isso que, nos dias
de
hoje, as águas do Reno, do
Danúbio e do Volga carregam lágrimas de escravos. Essas mesmas lágrimas
encherão o leito de todos os rios da Europa e de todos os rios da terra, até
que mares e oceanos transbordem toda a amargura dos homens escravos da Técnica,
do Estado, da Burocracia, do Capital. No fim, Deus terá piedade do homem — como
já o fez inúmeras vezes. Então — como a arca d Noé no dilúvio — os poucos
homens que terão permanecido homens flutuarão por sobre os vórtices desse
grande desastre coletivo. E é graças a eles que a raça humana será salva, como
já o foi em diversas ocasiões ao longo da história. Mas a salvação só virá para os homens que são
verdadeiramente homens, isto é, indivíduos. Dessa vez, não serão as categorias
que serão salvas.
Nenhuma Igreja, nenhuma nação,
nenhum Estado e nenhum continente poderá salvar seus membros em massa ou por
categorias. Apenas os homens, tomados individualmente, sem levar em conta sua
religião, raça ou categorias sociais ou políticas às quais pertencem, poderão
ser salvos. Eis por que o homem jamais deve ser julgado pela categoria a que
pertence. A categoria é a aberração mais bárbara e diabólica jamais concebida
pelo cérebro do homem. Não convém esquecer que o nosso inimigo é, ele também,
um homem, e não uma categoria.
Traian Koruga aproveitou a
pausa para perguntar com uma voz receosa:
— Pai, por que me explicar
tudo isso agora? Talvez seja melhor descansar…
— É o que farei. Descansarei.
Contudo, antes do repouso, eu precisava lhe dizer essas coisas. Você as conhece
e sente como eu. Todo homem as sente e conhece. Iohann Moritz também as sente.
Mas me faz bem repeti-las. Eu não conseguiria descansar se não as proferisse
antes.
— Sua mão está fria, pai.
(…)
Traduzido da edição francesa (La Vingt-Cinquème Heure)
PREPARAÇÃO
Suelen Lopes
REVISÃO
Carolina Rodrigues
REVISÃO DE EPUB
Fernanda Neves
GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca
E-ISBN
978-85-8057-555-2Edição
digital: 2014Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrínseca
Ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 Gávea, Rio de Janeiro
– RJTel./Fax: (21) 3206-7400
Em 2023, agosto, existem no Brasil muitos Iohann Moritz vítimas de um outro Nicolae Dobresco, 2º sargento…
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