sexta-feira, 18 de agosto de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Cômodo dos medidores

Aparecido Raimundo de Souza  

TUDO DE RUIM ou de bom que acontecia nas dependências dos dois espigões residenciais do Sol de Verão, saíam do interior daquele quarto abafado e sem janelas, tipo quitinetes cheirando a mofo, ao lado das salinhas de espera do átrio principal. No saguão social havia um espelho enorme, dois sofás imensos e uma mesinha de centro com um jarro cheio de flores de plástico emoldurando o corredor que acessava os oitos elevadores que levavam aos apartamentos das torres “um” e “dois”. Cada arranha-céu comportava trinta e oito andares, e, cada um, quatro apartamentos superluxuosos, com dependência de empregada, cozinha, banheiros, três quartos com suítes, sala, varanda e escritório, perfazendo um total geral de trezentos e quatro residências.  

Neste azado, ficavam os medidores de consumo de energia de todas as unidades, as caixas de barramento que forneciam luz aos corredores e demais dependências do complexo. Havia, dispostos, um número bastante significativo de armários de ferro onde os funcionários trocavam as roupas das idas e vindas pelas de trabalho. Este ambiente servia, igualmente, para ser guardado o material utilizado na limpeza, bem ainda os carrinhos aparadores de gramas, vassouras, rodos, ancinhos, enceradeiras, mangueiras, carrinhos de supermercados, baldes e todos os demais produtos utilizados na conservação das piscinas.  

Numa das paredes, perto da cozinha, havia um bicicletário enorme e, ao lado dele, os banheiros masculino e feminino com chuveiros quentes. E o que poderia ser rotulado de ruim saído deste tal quarto? Bem, por primeiro, na lista de coisas desagradáveis, a chegada de Piranho Zoião, um homenzinho baixinho, barrigudo e careca, funcionário da companhia de eletricidade, que dava as caras, logo de manhã, para cortar o fornecimento da luz dos moradores retardatários. Dito de outra maneira: daqueles condôminos que esqueciam de pagar os respectivos talões, ou então, vindo confiscar sem dó nem piedade, algumas dúzias de relógios, porque uns cem ou mais engraçadinhos, com a ajuda e a anuência do Basílio (vigia da noite e nas horas de folga quebra-galho de eletricista), fazia a festa.  

Basílio, tão logo o Piranho Zoião virava as costas, promovia em troca de suculentos lanchinhos, ou míseros trocados e, à revelia, logicamente, do Piranho e do seu Nininho Fermata, o síndico, uma “alcateia de gatos pingados” miando em meio a uma confusão de fios emendados com fitas isolantes, aqui e acolá. Também considerado uma coisa funesta: o ataque inesperado, e a qualquer hora do dia ou da noite, de um bando de adolescentes que surgia, do nada, e desligava, de sacanagem, as chaves de um dos elevadores (ou de todos, ao mesmo tempo) colocando em pânico e desespero os inquilinos que transitavam, fossem subindo ou descendo, e, de repente, se surpreendiam, presos entre um andar e outro, em meio de uma enorme escuridão.  

Nestas ocasiões, tais brincadeiras de péssimo gosto se transformavam num verdadeiro pandemônio, até que a administração era acionada. Um corre-corre dos diabos tomava vida e forma, na ânsia de acudir as vítimas: mulheres e crianças saiam retiradas dos elevadores, aos gritos e aos berros, pelo simples motivo de se tornarem reféns das diabruras dos moleques infelizes. Algum tempo depois, a paz quebrada novamente se fazia restabelecida. Embora cada canto fosse vigiado por olhos eletrônicos, ainda assim, os sapecas conseguiam engambelar a ação das equipes de segurança e promoverem um festival de baderna e desordem que deixava, em polvorosa, a maioria das famílias, principalmente aqueles domiciliados que tinham, aos cuidados, idosos e mulheres em avançado estado de gestação.  

Contrário à razão e ao bom senso, existia o problema das bicicletas que os filhos dos proprietários acomodavam no bicicletário colado às garagens. A coisa se complicava na hora em que estas crianças inventavam de saírem pedalando e encontravam, surpresas, seus brinquedos com os pneus furados ou com um cadeado diferente, sendo necessário os responsáveis acionarem um chaveiro para vir quebrar as argolas ou as correntes que dolosamente os pestinhas encapetados afixavam nas barras de cada uma delas. Em meio a esta confusão, se venturava, o lado bonito do aposento das bugigangas. O time das funcionárias (de uma empresa contratada pelo síndico Nininho Fermata) para a execução dos serviços de limpeza geral.  

As beldades usavam um uniforme amarelinho com um boné da mesma cor prendendo os cabelos sobre a cabeça. As vestimentas não tiravam o brilho e o charme delas, pelo contrário, lhes acrescentavam ares de graciosidades indescritíveis. Vistas, de longe, pareciam um punhado de cenouras esparramadas sobre um chão muito liso, ralando os esqueletos para lá e para cá, com suas vassouras enormes, espanadores coloridos, baldes de água e produtos de asseio, destacando o eucalipto, cujo odor forte se alastrava pelo ar e adentrava os fosseis nasais fazendo a turma espirrar convulsivamente. Uma destas joias raras, se sobressaia entre tantas. Parecia uma deusa encantada.  

Loira, os olhos muito verdes, seus cabelos, quando soltos, caíam, em cascata cobrindo parte dos ombros. Se amarrava ou prendia sob o boné, dava a impressão de uma princesa em fuga. O verde (dos seus olhos) se posicionava mais forte e penetrante. Seu rosto se fechava numa envolvência indescritível que despertava emoções adormecidas. Liliane. Foi por ela que numa tarde prometi doar uma semana de janta com direito a refrigerante, ao Basílio, para arranjar um jeito de me deixar, a sós, com ela, por uma hora, no cubículo abafado e cheirando a mofo.  

A espera por este momento mágico durou quatro semanas, após minhas negociações e acertos com o Basílio.  Valeu. E como valeu... peguei a bichinha de jeito, um pouco depois da troca de turno, na hora do banho, quando ela se preparava para ir embora. Fizemos amor. Um amor meio que às carreiras. Lembro que a encostei de costas numa barra de ferro que sustentava o eixo central do bicicletário.  Foi aí que arranquei a vergonha da guria e partimos para os finalmente. Tínhamos só uma hora e não podíamos perder tempo. O fato é que apesar dos ponteiros correrem velozes, alcançamos, juntos, a jubilação incontida que fluía de dentro de nós, como lavas de um vulcão incandescente e em meio de uma série de gritinhos lancinantes da mais pura felicidade.  

A empreitada, todavia, não se estendeu além do tempo cronometrado: na fúria da posse, Liliane, com as pernas diametralmente abertas, sem querer, se enroscou numa das bicicletas, que veio ao chão. Ato contínuo, e com a queda, rolou por cima de umas garrafas que jaziam, num canto, à espera de serem jogadas no lixo.  Um barulho dos diabos. O Basílio, muito discreto, colado à porta, de ouvidos em pé, nos deu toda a cobertura. Ninguém viu nada.  Por assim, durante uma semana (nas noites em que ele estava de plantão, na portaria), cumpri à risca, com o combinado. Providenciei uns jantares suculentos, com direito a refrigerante e até champanhe.  

Muito pouco, reconheço, em troca do favor que fez: ter colocado, em minhas mãos, a doce e deslumbrante Liliane. Soube, “a depois”, de outros encontros furtivos promovidos por ele, no mesmo resguardo dos medidores, envolvendo a rapaziada da torre “dois” com outras moças amigas da Liliane. E soube, outrossim, que novos “gatinhos nasceram latindo” em meio aos relógios engatilhados dos apartamentos de proprietários que tiveram a luz cortada. Basílio, sem sobra de dúvidas, um bom camarada. Conhecia, como a palma das mãos, o caminho das pedras e nunca tive notícias de que se vira flagrado fazendo qualquer coisa que alguém de ambos os complexos pudesse rotular de coisa errada. 

Pelo menos, a ponto de ser suspenso dos serviços que desempenhava tão bem para a administração. Todos, sem exceção, gostavam dele e o estimavam, como a um irmão de sangue. Eu, particularmente o tinha na conta de um grande amigo. Quem não ia com os cornos dele, o empregado da companhia de luz. O Piranho Zoião. Basílio trabalhava tão bem e discretamente, que seus “gatos”, não miavam, tampouco relinchavam”. Piranho Zoião sabia que havia alguma coisa errada, que não batia. Contudo, por mais que procurasse, nunca descobriu nada que incriminasse literalmente o velho vigia. Apesar do nome, Zoião não “zoiava” nada. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 18-8-2023 

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